Fiódor Dostoiévski
Memórias do subsolo
(6ª Edição)
Tradução de Boris Schnaiderman
Revisado por Joroncas
2009
São Paulo
editora■34
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Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o
seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as
circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo
mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos
representantes da geração que vive os seus dias derradeiros. No primeiro trecho, intitulado “O subsolo”, o
próprio personagem se apresenta, expõe seus pontos de vista e como que deseja esclarecer as razões pelas
quais apareceu e devia aparecer em nosso meio. No trecho seguinte, porém, já se encontrarão realmente
“memórias” desse personagem sobre alguns acontecimentos da sua vida. [Nota de F. M. Dostoiévski]
1.
O SUBSOLO
I
Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio
que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao
certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a
medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos
o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter
nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é
apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo.
Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente
caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos
médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que,
com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar
de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa
ainda mais.
Já faz muito tempo que vivo assim: uns vinte anos. Tenho quarenta, agora. Já
estive empregado, atualmente não. Fui um funcionário maldoso, grosseiro, e
encontrava prazer nisso. Não aceitava gratificações; no entanto, devia premiar-
me ao menos desse modo. (É um mau gracejo; mas não vou riscá-lo. Escrevi-o
pensando que sairia muito espirituoso; mas agora, percebendo que apenas
pretendi assumir uma atitude arrogante e ignóbil, não o riscarei, de propósito!)
Quando os solicitantes, com pedidos de informações, se acercavam da mesa
junto à qual me sentava, eu lhes respondia com um ranger de dentes, e sentia um
prazer insaciável quando conseguia magoar alguém. Conseguia quase sempre.
Na maior parte dos casos, aparecia gente tímida: era natural, em se tratando de
solicitantes. Mas, dentre os que se trajavam com presunção, eu não suportava
particularmente certo oficial. Ele teimava em não se sujeitar e tilintava o sabre
de modo abominável. Por causa daquele sabre, guerreamos um ano e meio.
Finalmente, venci. Ele deixou de tilintá-lo. Aliás, isso aconteceu ainda na minha
mocidade. Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha
raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo
momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência,
e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida;
que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. Minha boca
espumava, mas, se alguém me trouxesse alguma bonequinha, me desse chazinho
com açúcar, é possível que me acalmasse. Ficaria até comovido do fundo da
alma, embora, certamente, depois rangesse os dentes para mim mesmo e, de
vergonha, sofresse de insônia por alguns meses. É hábito meu ser assim.
Menti a respeito de mim mesmo quando disse, ainda há pouco, que era um
funcionário maldoso. Menti de raiva. Eu apenas me divertia, quer com os
solicitantes, quer com o oficial, mas, na realidade, nunca pude tornar-me mau. A
todo momento constatava em mim a existência de muitos e muitos elementos
contrários a isso. Sentia que esses elementos contraditórios realmente
fervilhavam em mim. Sabia que eles haviam fervilhado a vida toda e que pediam
para sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os deixava
extravasar. Atormentavam-me até a vergonha, chegavam a provocar-me
convulsões e, por fim, acabaram por enjoar realmente! Não vos parece que eu,
agora, me arrependo de algo perante vós, que vos peço perdão?… Estou certo de
que é esta a vossa impressão… Pois asseguro-vos que me é indiferente o fato de
que assim vos pareça…
Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem
canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias
em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso — que para
nada serve — de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e
de que somente os imbecis o conseguem. Sim, um homem inteligente do século
dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente
sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada. Esta
é a convicção dos meus quarenta anos. Estou agora com quarenta anos; e
quarenta anos são, na realidade, a vida toda; de fato, isso constitui a mais
avançada velhice. Viver além dos quarenta é indecente, vulgar, imoral! Quem é
que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-
vos: os imbecis e os canalhas. Vou dizer isto na cara de todos esses anciães
respeitáveis e perfumados, de cabelos argênteos! Vou dizê-lo na cara de todo
mundo! Tenho direito de falar assim, porque eu mesmo hei de viver até os
sessenta! até os setenta! até os oitenta!… Um momento! Deixai-me tomar
fôlego…
Pensais acaso, senhores, que eu queira fazer-vos rir? É um engano. Não sou
de modo algum tão alegre como vos parece, ou como vos possa parecer; aliás,
se, irritados com toda esta tagarelice (e eu já sinto que vos irritastes), tiverdes a
ideia de me perguntar quem, afinal, sou eu, vou responder: sou um assessor-
colegial (Posto mediano da administração civil, no regime czarista. (N. do T.)).
Fiz parte do funcionalismo a fim de ter algo para comer (unicamente para isto), e
quando, no ano passado, um dos meus parentes afastados me deixou seis mil
rublos em seu testamento, aposentei-me imediatamente e passei a viver neste
meu cantinho. Já antes disso vivi aqui, mas agora instalei-me nele. Tenho um
quarto ordinário nos arredores da cidade. A minha criada é uma aldeã velha,
ruim por estupidez, e, além disso, cheira sempre mal. Dizem-me que o clima de
Petersburgo está-me prejudicando e que, para os meus insignificantes recursos, a
vida aqui é muito cara. Sei disso; sei melhor que todos estes conselheiros e
protetores experimentados e sábios. Mas ficarei em Petersburgo; não deixarei
esta cidade! Não a deixarei porque… Eh! Mas, na realidade, me é de todo
indiferente o fato de que a deixe ou não.
Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer?
Resposta: de si mesmo.
Então, também vou falar de mim.
II
Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por
que não consegui tornar-me sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que,
muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno. Juro-vos,
senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença
autêntica, completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a
consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que
cabe a um homem instruído do nosso infeliz século dezenove e que tenha, além
disso, a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativa
de todo o globo terrestre. (Existem cidades meditativas e não meditativas.) Seria
de todo suficiente, por exemplo, a consciência com que vivem todos os
chamados homens diretos e de ação. Pensais, sou capaz de jurar, que escrevo
tudo isso para causar efeito, para gracejar sobre os homens de ação, e também
por mau gosto; que faço tilintar o sabre, tal como o meu oficial. Mas, senhores,
quem é que pode vangloriar-se das próprias doenças, e ainda procurar causar
com elas um efeito?
Aliás, que digo: Todos fazem isto; é justamente das doenças que se
vangloriam, e eu talvez mais que ninguém. Não discutamos; a minha objeção é
absurda. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só uma dose
muito grande de consciência, mas qualquer consciência, é uma doença. Insisto
nisso. Mas deixemo-lo também por alguns instantes. Digam-me o seguinte: por
que me acontecia, como se fosse de propósito, naqueles momentos — sim,
exatamente naqueles momentos em que eu era capaz de melhor apreciar todas as
sutilezas do “belo e sublime” (Alusão à obra de Kant, Observação sobre os
sentimentos do belo e do sublime (1764). Segundo afirmação de I. Z. Siérman,
em nota à edição soviética de 1956-1958, o livro tornou a expressão “belo e
sublime” muito popular entre os críticos russos…