MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
NOITE NA TAVERNA
Álvares de Azevedo
How now, Horatio? You tremble, and look
pale. Is not this something more
than phantasy? What think you of it?
Hamlet. Ato I. ShakespeareI
UMA NOITE DO SÉCULO
Bebamos! nem um canto de saudade!
Morrem na embriaguez da vida as dores!
Que importam sonhos, ilusões desfeitas?
Fenecem como as flores!
José Bonifácio Silêncio, moços! acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas
como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da
volúpia?
Cala-te, Johann! enquanto as mulheres dormem e Arnold o louro, cambaleia e adormece murmurando as
canções de orgia de Tieck, que música mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como
um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que
melhor noite que a passada ao reflexo das taças?
És um louco, Bertram! não é a lua que lá vai macilenta: e o relâmpago que passa e ri de escárnio as agonias do
povo que morre… aos soluços que seguem as mortalhas do cólera!
O cólera! e que importa? Não há por ora vida bastante nas veias do homem? não borbulha a
febre ainda as ondas do vinho? não reluz em todo o seu fogo a lâmpada da vida na lanterna do crânio?
Vinho! vinho! Não vês que as taças estão vazias bebemos o vácuo, como um sonâmbulo?
É o Fichtismo na embriaguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade da embriaguez!
Oh! vazio! meu copo esta vazio! Olá taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não
sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os da mulher: só valem beijos enquanto o fogo do
vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava?
O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Após os
vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscências, de
todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última
saúde! A taverneira ai nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo e a imagem do idealismo, e o tran-
sunto de tudo quanto ha mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! e
pois, ao fumo das Antilhas, a imortalidade da alma!
Bravo! bravo!
Um urrah! tríplice respondeu ao moço meio ébrio.
Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastavam-lhe com as faces de moço as rugas da fronte
e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre os cabelos prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim.
Falou:
Calai-vos, malditos! a imortalidade da alma!? pobres doidos! e porque a alma é bela, por que
não concebeis que esse ideal posse tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta,
não podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite a cabeceira de um
cadáver? E então não duvidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de
novo, aquelas pálpebras iam abrir-se, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem?
Imortalidade da alma! e por que também não sonhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! não
mil vezes! a alma não é como a lua, sempre moça, nua e bela em sue virgindade eterna! a vida não e
mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher vai porventura
transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo do verme vai alvejar-se
no cálice da flor ou na fronte da criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o átomo da inteligência
de Platão foi talvez para o coração de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade
pela metempsicose, bem! talvez eu a creia um pouco; pelo platonismo, não!
Solfieri! és um insensato! o materialismo é árido como o deserto, é escuro como um túmulo! A nós frontes
queimadas pelo mormaço do sol da vida, a nós sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nós os
sonhos do espiritualismo.
Archibald! deveras, que é um sonho tudo isso! No outro tempo o sonho da minha cabeceira era
o espírito puro ajoelhado no seu manto argênteo, num oceano de aromas e luzes! Ilusões! a realidade é
a febre do libertino, a taça na mão, a lascívia nos lábios, e a mulher seminua, trêmula e palpitante sobre
os joelhos.
Blasfêmia! e não crês em mais nada? teu ceticismo derribou todas as estátuas do teu templo,
mesmo a de Deus?
Deus! crer em Deus!?… sim! como o grito íntimo o revela nas horas frias do medo, nas horas em que se tirita de
susto e que a morte parece roçar úmida por nós! Na jangada do náufrago, no cadafalso, no deserto, sempre banhado do suor
frio do terror e que vem a crença em Deus! Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem!
Mas, se entendeis por ele os ídolos que os homens ergueram banhados de sangue e o fanatismo beija em sua inanimação de
mármore de há cinco mil anos.. não creio nele! E os livros santos? Miséria! quando me vierdes falar em poesia eu vos direi: aí há folhas inspiradas pela natureza ardente daquela
terra como nem Homero as sonhou, como a humanidade inteira ajoelhada sobre os túmulos do passado nunca mais lembrará!
Mas, quando me falarem em verdades religiosas, em visões santas, nos desvarios daquele povo estúpido, eu vos direi:
miséria! miséria! três vezes miséria! Tudo aquilo é falso: mentiram como as miragens do deserto! Estas ébrio, Johann! O ateísmo é a insânia como o idealismo místico de Schelling, o panteísmo
de Spinoza o judeu, e o esterismo crente de Malebranche nos seus sonhos da visão em Deus. A
verdadeira filosofia e o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do homem é o prazer. Daí vede que é o
elemento sensível quem domina. E pois ergamo-nos, nos que amanhecemos nas noites desbotadas de
estudo insano, e vimos que a ciência é falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de
mulher.
Bem! muito bem! é um toast de respeito!
Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam-no: Ao Deus Pã da natureza,
aquele que a antigüidade chamou Baco o filho das coxas de um deus e do amor de uma mulher, e que
nos chamamos melhor pelo seu nome o vinho!…
Ao vinho! ao vinho!
Os copos caíram vazios na mesa. Agora ouvi-me, senhores! entre uma saúde e uma baforada de fumaça, quando as cabeças
queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como os braços do carniceiro no
cepo gotejante, o que nos cabe é uma historia sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos como
Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg!
Uma história medonha, não, Archibald? falou um moço pálido que a esse reclamo erguera a
cabeça amarelenta. Pois bem, dir-vos-ei uma historia. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis
suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado. Solfieri! Solfieri! aí vens com teus sonhos!
Conta!
Solfieri falou: os mais fizeram silêncio.
II
SOLFIERI…Yet one kiss on your pale clay
And those lips once so warm my heart! my heart!
Cain. Byron
Sabei-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto
a amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que
mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!
Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão pôr aquele céu morno, o fresco
das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte
de… As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se fazias ermas, e a lua de sonolenta se
escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma
forma branca. A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como
gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.
Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela… e daí um canto
se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um
como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios cantando a
nênia das flores murchas da morte.
Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas.
Não viu a ninguém: saiu. Eu segui-a.
A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía as gotas pesadas: apenas eu
sentia nas faces caírem-me grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos de órfão.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar:
em torno dela passavam as aves da noite.
Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério….