A Hora da Estrela – Clarice Lispector

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A
A  HHOORRAA  DDAA  EESSTTRREELLAA  
CCllaarriiccee  LLiissppeeccttoorr  
 

HHOORRAA  DDAA  EESSTTRREELLAA  
 
 
 
 
 
A CULPA É MINHA 
OU 
A HORA DA ESTRELA 
OU 
ELA QUE SE ARRANJE 
OU 
O DIREITO AO GRITO 
 
QUANTO AO FUTURO 
OU 
LAMENTO DE UM BLUE 
OU 
ELA NÃO SABE GRITAR 
OU 
ASSOVIO AO VENTO ESCURO 
OU 
EU NÃO POSSO FAZER NADA 
OU 
REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES 
OU 
HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL 
OU 
SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS 
 
 
 
 

AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO  
 
Escrever estrelas (ora, direis) 
 
Clarice  Lispector  deixou  vários  depoimentos  sobre  a  sua 
produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento 
que causava em leitores e críticos.  
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver 
recusadas  as  histórias  que  mandava  para  um  jornal  de  Recife, 
pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a 
uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, 
já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, 
“por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma  vida ou uma 
coisa ou romance ou um personagem”. 
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, 
mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria 
abrir  mão  de  seu  traçado:  “Tem  gente  que  cose  para fora,  eu  coso 
para  dentro”.  Ela  se  afastou  dos  “escritores  que  por  opção  e 
engajamento  defendem  valores  morais,  políticos  e  sociais,  outros 
cuja  literatura  é  dirigida  ou  planificada  a  fim  de exaltar  valores, 
geralmente  impostos  por  poderes  políticos,  religiosos  etc.,  muitas 
vezes  alheios  ao  escritor”,  em  nome  de  uma  outra  forma  de 
questionar a realidade e nela intervir, através da literatura. 
Talvez  sem  o  saber,  Clarice  estava  optando  por  um  tipo  de 
escrita  característica  do  escritor  moderno,  para  quem,  no  dizer  do 
crítico  francês  Roland  Barthes,  escrever  é  “fazer-se  o  centro  do 
processo de palavra, é efetuar a escritura afetando— se a si próprio, 
é fazer coincidir a ação e a afeição (…)”. Por esta via, formula-se uma 
outra  qualidade  de  experiência  envolvida  na  escrita,  uma  nova 

perspectiva pela qual a linguagem é concebida: mais importante do 
que  relatar  um  fato,  será  praticar  o  autoconhecimento  e  o 
alargamento  do  conhecimento  do  mundo  através  do  exercício  da 
linguagem. 
A hora da estrela leva esta proposta às últimas conseqüências 
e  por  isso  a  sua  leitura  torna-se  tão  instigante.  É  certo  que  aqui 
reencontramos  a  agudeza  na  investigação  da  natureza  e  psicologia 
humanas  e  o  gosto  pela  minúcia,  patente  no  trato  dado  à  palavra, 
tão peculiares a Clarice Lispector. Mas se lermos o livro como hora e 
vez, inserindo-o no conjunto de sua obra, constataremos que existe 
algo de novo para além do insólito prefácio, em forma de dedicatória, 
da frouxidão do enredo, da mescla de linguagem sutil com um tom 
desnudo e cru ou, ainda, da intimidade com que o ch oque social é 
apresentado. É que aqui a Autora aborda de frente o embate entre o 
escritor  moderno,  ou  melhor,  do  escritor  brasileiro  moderno,  e  a 
condição indigente da população brasileira. Isto sem deixar de lado 
—  afinal  de  contas,  traz  a  assinatura  de  Clarice  Lispector  —  a 
reflexão sobre a mulher. 
A discussão se arma a partir de estórias que se entrecruzam, 
como  num  acorde  musical:  a  da  vida  de  Macabéa,  imigrante 
nordestina  que  vive  desajustada  no  Rio  de  Janeiro; a  do  Autor  do 
livro  que,  embora  sem  rosto  definido,  se  dá  a  conhecer  nos 
comentários que faz; e ainda a estória do próprio ato de escrever. Em 
verdade,  esta  última  estória  promove  o  grande  elo  entre  todas. 
Escrever o livro, escrever Macabéa e, sobretudo, escrever a si mesmo, 
eis  o  grande  desafio.  Dessa  proposta  cria  a  dramaticidade  da 
narrativa,  pois  a  escrita  envolve  múltiplas  e  complexas  relações: 
entre escritor e seu texto, entre escritor e seu público, entre escritor 
e esta personagem tão distante de seu universo. A linguagem, moeda 
de  comunicação  entre  os  homens,  ganha  foros  de  personagem.  E 
personagem  em  crise.  Emergem  indagações:  a  palavra que  se  usa 
expressa  o  que  se  é  verdadeiramente?  é  a  linguagem que  funda  a 

realidade?  a  palavra  distancia  ou  aproxima  pessoas?  dispor  da 
palavra  é  um  dom  ou  uma  maldição?  que  palavra  cabe ao  artista 
contemporâneo? que palavra se adequa ao escritor terceiromundista 
para falar de um Brasil miserável? que papel se espera do artista? 
Assim posto, o enredo, fugaz em aparência, revela algumas de 
suas linhas de sustentação. Está em jogo a linguagem — seu poder 
de conhecimento, de comunicação e de convencimento — e, com ela, 
debatem-se  a  existência  humana  e  os  laços  sociais. O  patente 
isolamento  das  pessoas  parece  conduzir  a  uma  reflexão  sobre  a 
condição do ser humano, agravada por um tipo de organização social 
que segrega os indivíduos entre si. E o artista constata este exílio do 
homem  na  própria  terra,  mas  não  tem  respostas  prontas  que  o 
justifiquem.  Esta  inquietação  o  move,  faz  com  que  escreva  e  tente 
descobrir  na  escrita  a  sua  própria  identidade  e  a  sua  própria 
humanidade, cara a cara com as de uma outra qualque r pessoa. Em 
A hora da estrela este empreendimento assume uma ou sadia e uma 
profundidade  inusitadas.  O  escritor  solta  as  amarras  e  vai  até  o 
fundo do poço: as origens do ser e as contradições da sociedade em 
que vive. Para tal, tomando por base a linguagem, ele se dispõe a três 
tipos  de  abordagem:  filosófica,  social  e  estética. Pela  perspectiva 
filosófica a os limites e alcances do conhecimento o mundo me diante 
á  palavra  e  a  consciência,  através  das  quais  o  ser humano  se 
distingue  dos  outros  seres  pela  perspectiva  social,  investiga  os 
impasses  criados  pela  separação  dos  indivíduos  em  diferentes 
grupos,  dando  destaque  à  inserção  do  escritor  e  do nordestino  na 
sociedade brasileira; pela perspectiva estética, sonda o gesto criador 
e  o  trabalho  na  busca  da  expressão  que  inaugure  uma  apreensão 
original  do  real.  Os  três  aspectos,  é  claro,  apresentam-se  de  forma 
imbricada no livro. 
Pelo ângulo filosófico, a evidência de que as origens do ser se 
perdem no tempo  e de que  é impossível voltar à época  em que “as 
coisas acontecem antes de acontecer”, leva o indivíduo a um estado 

de perplexidade. Ao afirmar que “Tudo no mundo come çou com um 
sim”, o narrador revela que sabe que as coisas se criam por um ato 
de vontade e de afirmação. 
Sabe,  portanto,  do  modo  pelo  qual  algo  passa  a  existir.  A 
compreensão  deste  algo,  no  entanto,  esbarra  naquilo  que  o 
antecedeu  e  que  possibilitou  a  expressão  de  uma  von tade, 
possibilitou  haver  o  não  e  o  sim,  para  que,  então, a  escolha  se 
fizesse.  Mais  importante  do  que  o  modo  pelo  qual  algo  que  não 
existia ganha existência, há o problema fundamental da origem, do 
começo de tudo, que se situa em uma ordem temporal  inapreensível 
pelo homem: “Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo 
jamais começou.” 
Assim,  a  pessoa  se  faz  intermináveis  perguntas  e  vive  uma 
série  de  faltas.  A  única  “verdade”  indiscutível  são  as  existências 
individuais.  Intui,  por  certo,  a  identificação  de  todos  em  uma 
unidade  (“Todos  nós  somos  um”),  mas  a  unificação  se  mostra 
principalmente pela carência (“e quem não tem pobreza de dinheiro 
tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa 
que ouro — existe a quem falte o delicado essencial”). Fica apenas a 
constatação de que cada ser é um fragmento ou parte  de algo. Daí 
projetar-se,  como  sentido  último  da  realidade,  a  realidade  que 
sempre está faltando. Mais dolorosamente ainda, existe a consciência 
de cada um, advertindo sobre este vazio, e o empenho em transpô-lo. 
A  consciência  aflora  como  atributo  humano  paradoxal :  dá 
instrumentos  para  se  tentar  responder  a  essas  indag ações, 
possibilita que se busque o sentido da vida e também desponta como 
fonte de dúvidas, assinalando a ruptura de cada ser individual com 
um modo de existência originário, em que tudo era um todo cheio de 
harmonia.  A  consciência  é  condição  de  liberdade  e, 
simultaneamente, aprisionamento.  
Esta nostalgia de uma integração total com o Cosmos confere 
uma certa tragicidade ao projeto do narrador. Pois ao mesmo tempo 

em que sabe que é um ser independente e gosta de sê-lo, anseia por 
uma  identificação  completa  com  o  outro,  por  uma  comunicação 
direta,  sem  obstáculos,  o  que  acabaria  anulando  a  s ua 
individualidade, a sua autonomia. 
A vivência de culpa, como se houvesse um erro fundamental a 
ser sanado, desponta desde o primeiro subtítulo do livro — “A culpa 
é  minha”  —  e  sempre  retorna.  É  ela  um  dos  sintomas deste 
desgarramento do homem no mundo que, vendo cerradas  as portas 
de  acesso à unidade originária, vai investigar,  solitário,  a dinâmica 
de  sua  existência  individual.  A  escolha  de  Macabéa,  anônima, 
“incompetente para a vida”, integra essa determinação, que inclui a 
busca de regressão ao inumano (“Não se trata apenas de narrativa, é 
antes  de  tudo  vida  primária  que  respira,  respira,  respira”)  e  a 
expiação de uma possível culpa. 
O narrador, perpassado por toda sorte de indagações sobre o 
ser e o existir,  atormentado pela incompletude e  pela dualidade da 
natureza humana para as quais as respostas são precárias, converte 
a  busca  em  sua  única  certeza.  Daí  decorrem  pelo  menos  dois 
movimentos centrais da narrativa. 
Primeiro, como toda busca e toda pergunta são busca de algo e 
pergunta para alguém, o narrador, para saber, tem de desdobrar-se, 
tem de dialogar. Aquilo que, em uma situação comuni cativa banal, 
passa  despercebido  projeta-se  para  o  narrador  como condição 
essencial  do  ser:  apreender  a  si  mesmo  inclui  o  confronto  com  o 
outro. 
Ao mesmo tempo, essa projeção traz implícito o retorno para si 
mesmo, quando se tenta unificar em um único sujeito individual os 
elementos que estão presentes nos outros seres do Universo. Entre 
estes  dois  movimentos  há  uma  tensão  permanente  no  interior  da 
obra.  O  narrador  mantém  com  seu  interlocutor  (seja ele  Deus,  o 
leitor  ou  Macabéa)  uma  postura  ambivalente  de  identificação  e 
afastamento.  

Enquanto artista, aproxima-se de Deus, ambos criadores, e, ao 
fazê-lo, de cena forma humaniza-O e diviniza a si mesmo. Ao mesmo 
tempo,  no  entanto,  Deus  permanece  enquanto  figura  abstrata, 
dominadora que corporifica a idéia de totalidade e nisto constitui um 
ente demoníaco, diante do qual o homem, condenado a  se expressar 
em palavras e fadado a morrer, se apequena (“Esse vosso Deus que 
nos  mandou  inventar”).  O  leitor  ora  é  alguém  com  quem  se 
solidariza, mesmo que na dor ou desamparo, ora é  alguém de quem 
quer distância. E Macabéa, se é nordestina como ele, dele se afasta 
pelo abismo social que os separa. 
Em meio à tensão entre homem e mundo é que surge o  debate 
em torno da  palavra. Sendo  o narrador um escritor, o  diálogo será 
mediado  pela  palavra.  Só  que,  tal  como  a  consciência,  a  palavra  é 
faca  de  dois  gumes,  pois  ao  mesmo  tempo  em  que  constitui  um 
instrumento  de  aproximação  há  o  risco  de  a  palavra do  artista 
“abusar  de  seu  poder”  e  aniquilar  a  palavra  de  Macabéa.  Disso 
resultaria  o  fracasso  dessa  experiência  ficcional, o  que,  no  caso, 
significaria  o  fracasso  do  seu  projeto  de  escrever enquanto  projeto 
existencial. 
Por  tudo  isso,  A  hora  da  estrela  acha-se  mergulhado  no 
desassossego da ausência de sentido de tudo e de todos. É um livro 
de caça. O narrador-escritor está diante da morte de Deus enquanto 
horizonte de sentido no homem e para o homem e, ao mesmo tempo, 
padece da figura poderosa do Criador. Vai ele, então, vasculhar a sua 
interioridade que, no entanto, sempre lhe escapa. Vai ele indagar o 
sentido da existência de Macabéa e sua tosca manifestação de vida. 
Nesta  verdadeira  viagem  põe  a  nu  a  sua  imagem  de  escritor  e 
denuncia  a  mentira  de  uma  palavra  transparente,  “verdadeira”, 
usada  como  forma  de  comunicação  entre  os  homens  e  do  homem 
consigo mesmo. Essa trajetória aproxima Clarice Lispector de outros 
escritores  modernos,  como  Fernando  Pessoa,  que  colocaram  sob 
suspeita a comunicação direta.  

A perspectiva social vai assim se definindo. A reflexão sobre o 
projeto ficcional em A hora da estrela será o meio pelo qual denuncia 
as máscaras sociais que encobrem a crise fundamental do indivíduo, 
alienado de si em rígidos papéis sociais. Escrever o  livro é forma de 
autoconhecimento (“Como que estou escrevendo na hor a mesma em 
que sou lido”), levado às últimas conseqüências quando elege como 
heroína alguém tão inexpressivo como Macabéa. Escrever implica em 
desnudar-se  e  aceitar  a  dor  envolvida  neste  processo;  escrever 
Macabéa  significa  enfrentar  o  desamparo  na  palavra que  tenta 
ajustar-se  à  essência  da  natureza  do  ser  que  constrói  na  forma  de 
personagem. 
O  narrador-escritor  coloca  desde  o  início  o  seu  drama  ao 
afirmar:  “sou  meu  desconhecido”.  Para  responder  a  esta  falta  de 
sentido põe à mostra a sua condição  de artista. Desmistifica  o seu 
lugar  de  pessoa  eleita,  “Antecedentes  meus  do  escrever?  sou  um 
homem que tem mais dinheiro do que os que passam fo me, o que faz 
de  mim  de  algum  modo  um  desonesto.”  ironiza  a  dificuldade  de 
inserção  do  escritor  na  sociedade,  “Sim,  não  tenho classe  social, 
marginalizado  que  sou.  A  classe  alta  me  tem  como  um  monstro 
esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, 
a classe baixa nunca vem a mim,” desmascara o preconceito contra a 
escritora mulher, “Aliás — descubro eu agora — também eu não faço 
a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria.  
Um  outro  escritor,  sim,  mas  teria  que  ser  homem  porque 
escritora mulher pode lacrimejar piegas: e põe em cheque até mesmo 
a  importância  de  seu  trabalho  diante  da  manifestação  de  vida: 
“(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo)”. 
A ironia empregada pelo narrador nos leva, no entanto, a um 
outro  aspecto,  que  a  existência  mesma  do  livro  confirma:  o  crédito 
atribuído  à  ficção  como  via  de  acesso  à  compreensão  do  mundo. 
Outras  passagens  do  livro  também  mostram  que  existe  um  outro 
modo de narrar, mais difícil, por certo, mas que permite provocar um 

novo olhar sobre a vida. 
“ O seu método de trabalho configura-se como um ver dadeiro 
ritual  de  iniciação  (“Estou  esquentando  o  corpo  para  iniciar, 
esfregando as mãos uma na outra para ter coragem”), que consiste 
em  eliminar  o  supérfluo  porque  só  assim  poderá  captar  “as  fracas 
aventuras de uma  moça numa cidade toda feita contra   ela”. A  sua 
atitude  diante  de  Macabéa  tem  continuidade  na  atitude  diante  da 
linguagem.  Para  falar  da  moça  terá  de  “não  fazer  a barba  durante 
dias  e  adquirir  olheiras  escuras  por  dormir  pouco”,  vestir-se  “com 
roupa  velha  rasgada”  tudo  para  se  no  nível  da  nordestina”.  Ao 
travestir-se não pretende ocultar-se em disfarce, mas fazer de si um 
terreno  propício  para  que  a  voz  e  a  presença  de  Macabéa  ganhem 
existência  sem  traição,  mesmo  sabendo  que  corre  o  risco  de  uma 
perda de comunicação nos moldes canonizados.  
Vê-se, portanto, que o narrador-escritor tece um paralelo entre 
uma certa postura física, espiritual e ética e a postura diante de seu 
instrumento  de  trabalho,  a  palavra,  que  “não  pode  ser  enfeitada  e 
artisticamente vã, tem que ser apenas ela”. Para tal, opõe a palavra 
sem  sentido,  alienada  ou  ilusória,  que  ele  descarta,  e  a  palavra-
expressão,  nomeadora:  “Mas  ao  escrever  —  que  o  nome  real  seja 
dado  às  coisas.  Cada  coisa  é  uma  palavra”.  A  hora  da  estrela 
consiste  em  uma  verdadeira  peregrinação  da  escuta  e  da  fala,  ao 
longo  da  qual  o  escritor  tenta  construir,  a  partir do  limo  de  uma 
pessoa-formiga  (Macabéa)  e  de  sua  própria  pessoa-gigante-de-
consciência, uma estrela-pessoa e uma estrela-palavra. Assim, uma 
pessoa  rala  e  muda  é  recolhida  pelo  olhar  arguto  de  um  escritor 
desorientado  que,  conduzido  pela  palavra  e  desconfiando  dela,  dá 
uma  forma  e  um  destino  a  si  próprio  e  à  moça  nordestina.  Essa 
busca faz com que fixe duas metas aparentemente con traditórias: a 
simplicidade em uma história que se quer “exterior e explícita, sim, 
mas que contém segredos” e a aproximação entre palavra e silêncio. 
O  narrador-escritor,  tal  como  o  poeta  francês  Baudelaire 

vagando  pelas  ruas  de  Paris,  vã  no  deserto  da  cidade  do  Rio  de 
Janeiro  a  decadência  do  ser  humano  através  de  Macab éa, 
representante das “milhares de moças espalhadas por cortiços” que 
“não  notam  sequer  que  são  facilmente  substituíveis (…)”.  Como 
Baudelaire,  ainda,  sente-se  atraído  por  esse  mundo sórdido  e 
precário. O artista será aquele que vê por detrás das máscaras, que 
se inclui nessa sociedade cruel e aniquiladora e que se compraz na 
denúncia.  Os  alvos  favoritos  serão  os  leitores,  Deus  e  todo  o 
ambiente agressivo em que se vive e do qual normalmente se desvia o 
olhar.  Nessa  perambulação  constata  que  algo  poderia  ter  vingado, 
mas  não  vingou,  o  que  é  dito  no  livro,  por  duas  vezes,  de  uma 
maneira que nos faz lembrar o verso conhecido de Manuel Bandeira, 
em seu Pneumotórax: “Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e 
o seu desespero, E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não 
fui.”  (p.  36),  “A  gargalhada  era  aterrorizadora  porque  acontecia  no 
passado  e  só  a  imaginação  maléfica  a  trazia  para  o presente, 
saudade do que poderia ter sido e não foi (p. 48).  
Na primeira vez, refere-se ao escritor; na segunda, a Macabéa. 
Por  aí  pode-se  inferir  que  essa  vivência  não  está  restrita  a  uma 
realidade  particular,  e  sim  coletiva.  Com  uma  perspectiva  mais 
ampla até, porque tem como pano de fundo o encontro  do mundo e 
seu  Deus.  A  ousadia  do  desmascaramento  se  reflete  também  na 
meticulosidade  com  que  o  grotesco  e  a  feiúra  de  Macabéa  são 
tratados. O escritor a descreve “de ombros curvos como os de uma 
cerzideira”, com “o corpo cariado”. Era “uma acaso, um feto jogado 
na lata de lixo embrulhado em um jornal”. 
O interesse pelo feio e pelo grotesco é mais um dado de ligação 
desta  obra  com  a  tradição  da  modernidade,  que  não  trata  o  feio 
apenas  como  elemento  cômico,  de  inferioridade  moral,  mas  eleva-o 
ao plano dos valores metafísicos. Coisa incompleta e discordante, o 
feio  afirma  o  fragmentário  da  vida.  Macabéa,  “  matéria  orgânica  é 
exemplo concreto da existência ara o Nada, sobretudo porque expõe, 

apenas com maior evidência, uma ausência de sentido que atinge a 
todos.  O escritor tenta penetrar nessa feiúra extrema no intuito de 
recobrar o que ela ainda guarda de estrela, de idealidade. O grotesco 
vem exprimir o encontro violento do divino com o diabólico. O autor 
procura  “danadamente  achar  nessa  existência  pelo  menos  um 
topázio  de  esplendor”(grifo  nosso),  algum  brilho  que  irá  avivar  o 
contraste, e insuficiência do real.  
Macabéa, em tudo e por tudo, é o oposto do herói épico. Sua 
trajetória  e  vida  aponta  para  a  inviabilidade  dos  grandes  feitos  na 
sociedade moderna. Retomando um conceito do crítico alemão Walter 
Benjamin,  pode-se  afirmar  que  ela  sequer  teve  uma  experiência  de 
vida  que  a  memória  um  dia  pudesse  ou  soubesse  resgatar.  No 
máximo  um  canto  de  galo  faz  com  que  só  lembre  da  terra  da 
infância,  mas  este  também  é  um  território  espúrio. Proveniente  de 
um  meio  rude,  órfã  de  pai  e  mãe,  criada  a  pancadas pela  tia, 
Macabéa  não  teve  propriamente  uma  história  pessoal.  Felicidade 
para  ela  é  um  conceito  oco.  De  índole  passiva,  torna-se  presa  fácil 
dos  mitos  e  produtos  da  indústria  cultural.  Admira as  grandes 
estrelas do cinema e sente-se fascinada pelos anúncios publicitários. 
As  notícias  descosidas  da  Rádio  Relógio  integram  este  contexto 
alienante, dentro do qual o cotidiano se faz em um tempo meramente 
físico, desprovido de uma ação subjetiva que com ele interaja numa 
proposta de transformação. Inexiste passado; inexiste projeto futuro. 
O  quotidiano  de  Macabéa  confirma,  em  cada  detalhe, a  sua 
inabilidade  e  seu  despreparo  para  o  enfrentamento  mais  elementar 
diante  das  dificuldades  inerentes  à  vida.  Pouco  habilitada  para  o 
trabalho; fracassa também no amor. A sua única conquista amorosa, 
o  desajeitado  Olimpo,  foge-lhe  das  mãos  como  água. Quando  já 
parece  esgotada  a  denúncia  de  sua  fragilidade,  mais  um  pormenor 
desponta como se, boneca animada, Macabéa estimulas se as forças 
negativas  do  mundo,  acentuando  o  seu  lugar  de  vítima,  até  o 
desenlace trágico do atropelamento. A estória de Macabéa se resume 

à  sobrevivência  quase  inumana,  pois,  para  tudo  o  que  se  sente  e 
deseja, não dispõe de palavras para expressar. 
Assim; o testemunho mais veemente de sua falta deposse sobre 
si mesma e sobre o mundo é a maneira como lida com a palavra. Ou 
ela se priva da palavra e permanece em um silêncio que não é opção, 
mas  maneira  precária  de  ser  (em  oposição  ao  silêncio  enquanto 
momento  de  linguagem,  de  que  fala  Sartre);  ou  ela  fala  em 
dissonância.  Sempre  se  expressa  inadequadamente  ou  mostra 
interesse  por  palavras  e  conceitos  reveladores  de  sua  condição 
existencial  e  social  mas  que,  descontextualizados, não  a  levam  ao 
autoconhecimento, e que lhe vale a magia secreta que termos como 
designar, mimetismo, efeméride, renda per capita, conde se somente 
despertam  nela  uma  curiosidade  infantil?  O  próprio nome  adverte 
ara um contrasenso, pois ela em nada se aproxima da índole heróica 
dos macabeus, povo guerreiro na história dos hebreus. 
A perspectiva estética vem a propósito de evitar o falseamento 
da realidade. O narrador-escritor escolhe uma nova maneira de olhar 
e  uma  nova  postura  diante  do  narrar,  indicadas  no  livro  como 
distração e flash fotográfico. Em ambos destaca-se a idéia do relance, 
de uma súbita visão que desarma, permitindo que se apreenda algo 
que  resiste  a  ser  descoberto,  As  analogias  entre  palavra  e  sonho, 
pedra e silêncio vão na mesma direção.  
Os  sonhos  deixam  fluir  “a  penumbra  atormentada”  — 
atormentada  porque  toca  na  verdade,  que  “é  sempre  um  contato 
interior  e  inexplicável”.  A  aventura  paradoxal  dessa  ficção  consiste 
em  pôr  às  claras  algo  que  se  caracteriza  pela  obscuridade.  Para 
conseguir  a  integração  entre …

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