A Volta ao Mundo em 80 Dias [1874]
Jules Verne (Júlio Verne) [1828-1905]
Tradução:
Teotonio Simões [NT]
Fonte Digital do Original:
Le tour du monde en quatre-vint jours
éditions NoPapers
Ilustrações de
Alphonse-Marie de Neuville
e
Léon Benett
(1873)
Créditos da imagem utilizada na capa:
Pièce de théâtre
LE TOUR DU MONDE EN QUATRE-VINGTS JOURS
du journal
L’UNIVERS ILLUSTRÈ
du numéro paru aussitôt après la première représentation de la pièce au
Théâtre de la Porte-Saint-Martin
le 07. novembre 1874
Editoração eletrônica: Lendo com amigos
edição feita pelo site Ebooks Brasil
livremente distribuído, desde que citada a fonte da editoração eletrônica.
Domínio Público
Índice
Biografia
A VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS
Índice da Obra
Biografia
Julio Verne
(1828-1905)
Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11
anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao
lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera
aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar
a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.
Promessa que manteve em mais de oitenta livros.
Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as
veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.
Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais
prestiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar
insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-
se um profissional das letras.
Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas
da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos
estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do
homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.
Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.
Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o
conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e
converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863).
Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual,
por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano.
O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais
de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais
na revista Magasin D’éducation et de Récréation.
Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da
breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa.
Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne,
fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges
Mélies, 1902), La Voyage a travers l’impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000
lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogoff (J. Searle Dawley,
1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros
filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.
A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário,
dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de
Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley
MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a
participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV,
agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg),
Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).
Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao
trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de
paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido.
Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das
desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o
coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranqüilas e todos os seus
biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou
com a morte da misteriosa dama.
Verne também se interesou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de
Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.
Morreu em 24 de Março de 1905
CAPÍTULO I
EM QUE PHILEAS FOGG E PASSEPARTOUT RECIPROCAMENTE SE
ACEITAM, O PRIMEIRO NA QUALIDADE DE PATRÃO, O SEGUNDO
NA DE CRIADO
Em 1872, a casa de número 7 da Saville Row, Burlington Gardens — casa em
que Sheridan morrera em 1814 — era habitada por Phileas Fogg, esquire, um dos
membros mais singulares e destacados do Reform Club de Londres, apesar de
todo seu esforço em evitar, segundo parecia, chamar a atenção sobre si.
A um dos maiores oradores que honram a Inglaterra, sucedia pois este Phileas
Fogg, personagem enigmático, de quem nada se sabia, salvo que era homem
muito polido e um dos mais perfeitos gentlemen da alta sociedade inglesa.
Diziam que era parecido com Byron — pela cabeça, pois que era irrepreensível
quanto aos pés — mas um Byron de bigode e suíças, um Byron impassível, que
teria vivido mil anos sem envelhecer.
Inglês, seguramente, Phileas Fogg não era talvez londrino. Nunca o tinham visto
nem na Bolsa, nem no Banco, nem em nenhum dos corredores da City. Nem as
bacias e docas de Londres jamais tinham recebido um navio cujo armador fosse
Phileas Fogg. Este gentleman não figurava em nenhuma gerência administrativa.
Nunca seu nome ressoara em algum escritório de advogados, nem no Temple,
nem em Lincoln’s Inn, nem em Gray’s Inn. Jamais pleiteara à Corte do
chanceler, nem ao Banco da Rainha, ao Tesouro (Exchequer), nem a qualquer
Corte eclesiástica. Não era industrial, nem negociante, nem comerciante, nem
agricultor. Não fazia parte nem da Instituição real da Grã-Bretanha, nem da
Instituição de Londres, nem da Instituicão dos Artesãos, nem da Instituição
Russell, nem da Instituição literária do Oeste, nem da Instituição do Direito, nem
desta Instituição das Artes e das Ciências reunidas, que está sob o patrocínio direto
de Sua Graciosa Majestade. Não pertencia, resumindo, a nenhuma das
numerosas sociedades que pululam na capital da Inglaterra, da Sociedade da
Armônica à Sociedade entomológica, fundada principalmente com a finalidade
de promover a destruição dos insetos nocivos.
Phileas Fogg era membro do Reform Club, e só.
Phileas Fogg
A quem se admirasse de que um gentleman tão misterioso figurasse entre os
membros desta distinta associação, responderíamos que foi admitido graças à
recomendação dos Baring, junto aos quais tinha crédito aberto. Além disso,
Phileas Fogg apresentava um certo ar de respeitabilidade por serem os seus
cheques pagos à vista, debitados em sua conta corrente invariavelmente credora.
Phileas Fogg seria rico? Incontestavelmente. Mas como fizera fortuna era o que
os mais bem informados não poderiam dizer, e Mr. Fogg seria o último a quem
conviria indagar. Em todo caso, não era nada pródigo, mas sem ser ávaro,
porque onde quer que faltasse uma contribuição para algo nobre, útil ou
generoso, contribuía silenciosa e mesmo anonimamente.
Em suma, ninguém menos comunicativo do que este gentleman. Falava o menos
possível, e parecia tanto mais misterioso quanto mais silencioso se mostrava.
Embora vivesse às claras, tudo o que fazia era tão matematicamente sempre o
mesmo, que a imaginação, insatisfeita, procuraria ver além.
Teria viajado? Era provável, porque ninguém conhecia melhor do que ele o
mapa terrestre. Não havia lugar, por afastado que fosse, de que não parecesse ter
conhecimento especial. Às vezes, mas em poucas palavras, breves e claras,
corrigia os mil boatos que circulavam no club a propósito de viajantes perdidos
ou extraviados; indicava as verdadeiras probabilidades, e suas palavras muitas
vezes acharam-se como que inspiradas por uma espécie de dom profético, uma
vez que o que acontecia acabava sempre por as justificar. Era um homem que
devia ter viajado por toda a parte — pelo menos em espírito.
O que era certo, todavia, é que Phileas Fogg havia muitos anos que não saia de
Londres. Os que tinham tido a honra de o conhecer um pouco mais que os outros,
atestavam que — salvo o caminho direto que percorria diariamente para vir de
sua casa ao club — ninguém poderia pretender tê-lo visto em outro lugar. O seu
único passatempo era ler jornais e jogar whist. Neste jogo silencioso, tão
apropriado à sua índole, ganhava freqüentemente, mas os ganhos nunca eram
por ele embolsados e respondiam por uma quantia considerável de seu
orçamento destinado à caridade. Além disso, é preciso que se note, Mr. Fogg
jogava evidentemente por jogar, não para ganhar. O jogo era para ele um
combate, luta contra uma dificuldade, mas luta sem movimento, sem
deslocamento, sem fadiga, e isso conformava-se ao seu caráter.
De Phileas Fogg não se conheciam nem mulher nem filhos — o que pode
acontecer às pessoas as mais honestas — nem parentes nem amigos — o que é
na verdade mais raro ainda. Phileas Fogg vivia só na sua casa de Saville Row,
onde pessoa alguma penetrava. Do seu interior ninguém cuidava. Bastava-lhe um
criado. Almoçando e jantando no club a horas cronometricamente determinadas,
na mesma sala, à mesma mesa, sem banquetear os colegas, não convidando
nenhum estranho, só voltava à casa para se deitar, à meia noite em ponto, sem
jamais usar os aposentos confortáveis que o Reform Club coloca à disposição dos
seus membros. Das vinte e quatro horas, passava dez em casa, fosse para dormir,
fosse para cuidar da sua toilete. Quando passeava, era invariavelmente em passo
igual, na sala de entrada parquetada, ou na galeria circular, por sobre a qual se
arredonda um caramanchão de vidros azuis, sustentado por vinte colunas jônicas
de porfiro vermelho. Se almoçava ou jantava, eram as cozinhas, a despensa, a
copa, a peixaria, a leiteria do club que forneciam à sua mesa suas suculentas
reservas; eram os criados do club,…





