A GAROTA DO PENHASCO

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E assim prosseguimos, barcos contra a corrente,
arrastados incessantemente para o passado.
F. Scott Fitzgerald, O grande Gatsby

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Aurora
Eu sou eu.
E vou contar uma história.
Dizem que as palavras acima são as mais difíceis para qualquer escritor.
Ou seja: como começar. Plagiei a primeira tentativa de escrita do meu irmão
caçula. A simplicidade de sua primeira linha nunca me saiu da cabeça.
Então comecei.
Devo alertar que não sou uma profissional nesse ramo. Na verdade, nem me
lembro da última vez que peguei em caneta e papel. Sempre falei com o corpo,
sabe? Como não posso mais fazer isso, decidi falar com a mente.
Não estou escrevendo com qualquer intenção de publicar. Temo que a questão
seja um pouco mais egoísta. Estou naquele ponto da vida que todos receiam:
o de precisar preencher os dias com o passado, porque me resta pouco futuro.
É algo para fazer.
E considero a minha história interessante – a minha e a da minha família,
que começou quase cem anos antes de eu nascer.
Sei que todo mundo pensa isso da própria história. E é verdade. Todo ser
humano tem uma existência fascinante, com um grande elenco de personagens
bons e maus.
E quase sempre, em algum ponto do caminho, um quê de magia.
Fui batizada em homenagem à princesa de um conto de fadas famoso. Talvez
por isso eu sempre tenha acreditado em magia. À medida que fui envelhecendo,
percebi que contos de fadas são uma alegoria da grande dança da vida que
todos iniciamos ao nascer.
E não há como escapar até morrermos.
Então, caro leitor, cara leitora – posso falar assim, pois imagino que minha
história encontrou um público, se você está lendo isto –, me deixe começar.

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Como muitos dos personagens morreram bem antes de eu nascer, vou fazer
o máximo para usar a imaginação a fim de trazê-los de volta à vida.
E enquanto estou sentada aqui pensando sobre a história que vou contar, e
que me foi transmitida por duas gerações, percebo que existe um tema principal.
Esse tema é o amor, claro, e as escolhas que fazemos por causa dele.
Muitos de vocês vão logo pensar que estou me referindo ao amor entre um
homem e uma mulher – e sim, há uma boa dose disso. Mas existem também
outras formas preciosas e igualmente potentes: o amor de um pai ou de uma
mãe por um filho, por exemplo. E também o tipo obsessivo, destrutivo, que
gera o caos.
Outro tema que perpassa esta história é a grande quantidade de chá que as
pessoas tomam – mas agora já estou fugindo do assunto. Me perdoem, é isso
que fazem os que se sentem velhos. Então vamos continuar.
Vou servir de guia e interromper quando achar necessário explicar alguma
passagem em mais detalhes, pois a história é complexa.
Acho que, para complicar ainda mais, vou começar perto do final, quando
eu era uma menina de 8 anos, órfã de mãe. No alto de um penhasco, de frente
para a baía de Dunworley, meu lugar favorito no mundo.
Era uma vez…

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Baía de Dunworley, West Cork, Irlanda
A pequena figura estava parada perigosamente perto da borda do penhasco.
Seus cabelos ruivos, longos e cheios esvoaçavam, soprados pela brisa forte.
Um fino vestido branco de algodão descia até os tornozelos, deixando à
mostra os pequenos pés descalços. Seus braços estavam esticados, as palmas
viradas para o mar cinza que espumava lá embaixo, e o rosto pálido voltado
para cima, como quem se oferece em sacrifício aos elementos.
Grania Ryan a observava, hipnotizada por aquela visão fantasmagórica.
Estava atordoada demais para saber se o que via era real ou fruto da imagi-
nação. Fechou os olhos por um momento, então tornou a abri-los e viu que a
pequena figura continuava lá. Quando seu cérebro processou as informações
recebidas, ela deu alguns passos hesitantes à frente.
Ao chegar mais perto, Grania se deu conta de que a figura não passava
de uma criança, que a roupa branca era uma camisola. Ela via as nuvens
escuras de tempestade pairando acima do mar, e as primeiras gotas de chuva
pinicaram suas bochechas. A fragilidade daquele pequeno ser humano diante
da natureza selvagem ao redor apressou seus passos.
O vento fustigava suas orelhas, começando a soar raivoso. Grania parou
a 10 metros da menina, que continuava imóvel. Viu os dedinhos do pé
azulados que a prendiam estoicamente à rocha enquanto o vento cada vez
mais forte açoitava e balançava seu corpo magro como se fosse uma muda
de salgueiro. Chegou mais perto e parou logo atrás da menina, sem saber
ao certo o que fazer. Seu instinto era correr e agarrá-la, mas se a criança
levasse um susto e se virasse, um simples passo em falso poderia resultar
em uma tragédia, lançando a garota a uma morte certa nas pedras cobertas
de espuma 30 metros abaixo.
Grania ficou parada, morrendo de medo, enquanto tentava desesperada-

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mente pensar no melhor jeito de afastar a criança do perigo. Mas, antes de
conseguir tomar uma decisão, a menina se virou devagar e a encarou com
um olhar vazio.
Por instinto, Grania estendeu os braços.
– Não vou te machucar, prometo. Vem cá, você vai ficar bem.
A menina a encarou, sem sair da borda do penhasco.
– Posso levar você para casa, se me disser onde mora. Vai acabar ficando
doente aqui. Por favor, me deixa ajudar – suplicou Grania.
Ela deu mais um passo em direção à criança, e então, como se desper-
tasse de um sonho, uma expressão de medo atravessou o rosto da menina.
No mesmo instante, ela girou para a direita e correu para longe de Grania,
seguindo pela borda do penhasco até sumir de vista.
Y
– Estava quase mandando uma patrulha de busca atrás de você. Esse tem-
poral de hoje é dos bons!
– Mãe, eu tenho 31 anos na cara e há dez moro em Manhattan – respondeu
Grania em tom seco, entrando na cozinha e pendurando a capa de chuva
acima do fogão. – Não precisa ficar cuidando de mim. Já sou bem grandinha,
lembra? – Ela sorriu e foi até a mãe, que estava ocupada pondo a mesa do
jantar, e deu-lhe um beijo na bochecha. – De verdade.
– Pode até ser, mas eu já vi homens bem mais fortes serem soprados do
penhasco num vendaval como o de hoje.
Kathleen apontou pela janela da cozinha para o vento descontrolado que
fazia o arbusto de glicínia tamborilar monotonamente na vidraça com seus
galhos ressequidos.
– Acabei de fazer chá. – Kathleen limpou as mãos no avental e foi até o
fogão. – Quer um pouco?
– Seria ótimo, mãe. Por que não se senta e descansa uns minutos enquanto
eu sirvo a gente? – Grania conduziu a mãe até uma das cadeiras da cozinha,
puxou-a para ela e a fez se sentar com delicadeza.
– Mas só cinco minutos, os rapazes vão chegar às seis querendo o chá.
Grania arqueou a sobrancelha enquanto servia o líquido escuro em duas
xícaras, mas nada comentou sobre aquela dedicação doméstica ao marido e ao
filho. Não que algo houvesse mudado nos últimos dez anos, desde que saíra
de casa: Kathleen sempre havia mimado os homens, pondo as necessidades

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e os desejos deles em primeiro lugar. Mas o contraste da vida da mãe com
a dela, em que a norma era a emancipação feminina e a igualdade entre os
sexos, deixava Grania desconfortável.
E mesmo assim… apesar de ter se libertado do que muitas mulheres mo-
dernas considerariam tirania masculina ultrapassada, quem era atualmente
mais feliz, mãe ou filha? Grania suspirou com tristeza enquanto colocava
leite no chá da mãe. Sabia a resposta.
– Pronto, mãe. Quer biscoito?
Grania pôs a lata de biscoitos diante de Kathleen e a abriu. Como sempre,
o recipiente estava cheio até a boca com biscoitos recheados de creme, de
chocolate e amanteigados. Mais uma relíquia da infância que provocaria
em suas contemporâneas de Nova York, tão preocupadas com a silhueta, o
mesmo horror que uma pequena bomba nuclear.
Kathleen pegou dois biscoitos e disse:
– Vamos, pega um também para me acompanhar. O que você come não
dá para sustentar nem um camundongo.
Grania obedeceu e mordiscou um biscoito enquanto pensava que, desde
que chegara à casa dos pais, dez dias antes, vivia empanturrada com a gene-
rosa comida caseira da mãe. Mesmo assim, podia dizer que tinha o apetite
mais saudável de todas as mulheres que conhecia em Nova York. E que de
fato usava seu forno com a finalidade para a qual ele fora projetado, e não
como um lugar para guardar louça.
– Caminhar arejou um pouco a sua mente, foi? – comentou Kathleen,
devorando um terceiro biscoito. – Sempre que tenho um problema, saio
para caminhar e volto com a solução.
– Na verdade… – Grania tomou um gole de chá. – Mãe, eu vi uma coisa
estranha. Uma menina pequena, devia ter 8 ou 9 anos, só de camisola, bem
na beira do penhasco. Tinha um cabelo ruivo lindo, cachea­ do… parecia
sonâmbula, porque se virou para mim quando cheguei perto e os olhos
estavam… – Ela procurou pela palavra certa. – … vazios. Como se ela não
estivesse me vendo. Então pareceu acordar e fugiu feito um coelho assustado
pela trilha do penhasco. Sabe quem pode ser?
Grania viu a cor se esvair do rosto da mãe.
– Está tudo bem,…

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