A Política
Aristóteles
Prefácio
Só penetramos bem as obras próximas de nós mesmos ou de nosso tempo,
pelo menos por algum aspecto.
Igualmente, só se amam os escritos cujo autor nos atrai por seu caráter e por
seu exemplo. Ora, Aristóteles, com a extrema dignidade de vida, a nobreza de
pensamento, o gosto por um justo equilíbrio, é para nós, por toda a sua
personalidade, um reconforto.
Com efeito, foi possível classificá-lo não apenas entre os “grandes espíritos”,
mas também entre os “grandes corações”. Na coleção de biografias – quase de
hagiografias -que levava este título, M. D. Roland-Gosselin chega a esta
conclusão um tanto inesperada: “Decididamente, não édemais dizer que
Aristóteles foi um excelente marido, um pai afetuoso e devotado, um bom
homem.” Ela ilumina com uma luz bastante simpática a fisionomia do Estagirita,
cuja vida, na medida em que a conhecemos exatamente, revela poucos
acontecimentos e, afora a educação de Alexandre, é carente dos grandes cargos
que não raro acompanham os grandes livros consagrados ao Estado e a seu
governo.
Aristóteles não é nada mais do que um “intelectual”, no melhor sentido da
palavra, um “letrado” que às vezes age não sem prudência, mas nunca sem
coragem ou sem retidão. Romperá com seu real discípulo depois do assassínio
de Calístenes; para retirá-la do cativeiro, desposará Pítia, sobrinha e filha adotiva
de seu amigo crucificado, Hérmias de Atárnea; com palavras tocantes, cercará de
zelos póstumos sua segunda esposa, Hérpilis, “que lhe foi muito devotada”.
Assim, por si mesmo, o homem deu testemunho do alto ideal de que está
impregnada toda a sua obra. Colocou-se naquela disposição de espírito que Paul
Bureau diz ser a condição primeira de todo estudo sociológico, exigindo daqueles
que se entregaram a ele o acordo da seriedade de suas vidas com a gravidade
de suas pesquisas.
Estas qualidades morais, no entanto, não teriam por si sós feito do autor da
Política senão um estimável pedagogo e não o gênio excepcional que “entreviu
de relance os problemas fundamentais da sociologia jurídica: a microssociologia
do direito, a sociologia jurídica diferencial e a sociologia jurídica genética”; que,
mais diretamente, fundou o direito constitucional com seus diferentes ramos,
histórico, nacional, geral e comparativo; que criou a ciência política no sentido de
que, estabelecendo a dinâmica e medindo o rendimento das instituições, ela
ultrapasse o direito. Um duplo concurso de circunstâncias era necessário para o
surgimento e o florescimento dessa prodigiosa personalidade e para, dentro do
“milagre grego”, realizar o milagre aristotélico.
Em primeiro lugar, era preciso que Aristóteles fosse, senão médico – ele
sempre se proibiu de ser um profissional -, pelo menos biólogo, para que, dado
desde a infância às ciências da natureza, tivesse adquirido o método original com
o qual criaria as ciências do homem em sociedade.
Como Wilhelm Oncken faz lembrar, Aristóteles era filho de um Asclepíada
chamado Nicômaco, que vivia na corte de Macedônia como amigo e médico
pessoal do rei Amimas II. Nicômaco era considerado um dos homens mais doutos
e mais cultos de sua profissão. Segundo Dió- Laércio, teria escrito seis volumes
de medicina e um de física, isto é, provavelmente, de ciências naturais, no sentido
amplo da palavra. Tal ascendência foi de decisiva importância para Aristóteles,
pois a ciência médica na época se transmitia de pai para filho, numa iniciação
confidencial que começava na mais tenra infância. Assim, sua instrução já se
mostrava acabada quando Nicômaco o deixou órfão, entre dezesseis e dezessete
anos. Já estava de posse de suas concepções mestras quando veio a Atenas
para seguir os ensinamentos do divino Platão. Estava pronto para revolucionar o
pensamento de seu tempo e para prefigurar a atitude científica de que se orgulha
a sociologia contemporânea. Ele levava à pesquisa esta abnegação que é própria
do verdadeiro cientista que não chega à conclusão senão através de um longo
exame analítico, esta paciência que escapa às tentações dos resumos brilhantes
e das conclusões a priori. O Estagirita sempre prevenirá seus discípulos contra a
facilidade e a presunção e, se algumas vezes lhe acontecer, na aplicação de suas
próprias regras, de também pecar, sempre saberá voltar aos princípios essenciais
do ensino paterno. A pergunta do aluno Alexandre, que o interrogará sobre os
seus mestres, responderá altivamente que “as próprias coisas o instruíram e não
lhe ensinaram a mentir”.
Mas uma segunda disposição da sorte deveria vir reforçar em Aristóteles as
virtudes do observador e a imparcialidade do cientista. Quando o autor da Política
começou seus estudos em Atenas, enfrentou a atmosfera pesada criada pela
perdida guerra do Peloponeso, deixando nos espíritos cultivados uma dolorosa
farpa. A última concepção do Estado, ideal e serena, é a de Hipódamo de Mileto.
Platão era uma criança quando a tempestade passou sobre a Hélade, e a
instabilidade de uma luta de partidários, durante cerca de trinta anos, lhe inculcou
uma concepção romântica do Estado que rejeita o presente, idealiza o passado
de maneira nostálgica e aumenta indevidamente as virtudes da Lacedemónia, a
rival vitoriosa.
Pelo contrário, Aristóteles sente-se imediatamente um ateniense. Está
convencido da missão ecumênica daquela Cidade, à qual pertence em parte por
seu nascimento, mas sobretudo pela educação e pelo afeto. No entanto, não
compartilha em seu coração a dor patriótica e o orgulho ferido de seus
contemporâneos para com Filipe e Alexandre. Esforça-se por escrutar o futuro e
nele descobre as tribos gregas divididas reunindo-se sob o forte cajado dos
macedônios. Na evolução dos povos, queria ver superpor-se aos três estados que
descreveu – a família, a aldeia, a Cidade – o da federação dos Estados.
Diferentemente de Demóstenes, mais velho três anos do que ele, e que morreu
no mesmo ano, ele se sente incapaz de se ligar ao passado e de lutar
desesperadamente por ele.
Além disso, Aristóteles, como mais uma vez explica muito bem Wilhelm
Oncken, não pode ser um escritor “engajado”. Atenas era sua pátria por eleição e
predileção, mas não sua pátria carnal, e sua escolha, que tudo deve ao espírito,
surpreende de início quando imaginamos a gravidade da situação e a asperidade
da luta que na época dividia os patriotas democratas e os macedônios
monarquistas. Atenas concedia-lhe, conforme as regras, a proteção de sua
pessoa, dos bens e das convicções, mas ele continuava a ser um “meteco”, um
indivíduo sem direitos públicos, meramente tolerado, que precisava de uma
causa diante dos tribunais, que pagava doze dracmas por ano para não ser
vendido como escravo, que carregava os vasos sagrados nas procissões e era
obrigado a muita discrição no comportamento exterior. Sem dúvida, a democracia
ateniense era vasta em suas concepções sobre o direito de cada um à existência,
ao pensamento, à palavra, mas a aristocracia reagia violentamente contra esse
liberalismo. Na maior parte do tempo, os “metecos” não participavam em nada da
vida intelectual. Eram homens de negócios que, assim como os judeus na Idade
Média, viviam à margem das altas classes e não pediam para se misturarem a
elas. Aristóteles, ao contrário, por causa de seu ensino, achava-se
necessariamente em contato com a melhor sociedade e deve ter sofrido com
isso. Foi obrigado a levar adiante a sua polêmica com Platão segundo as regras
de uma grande prudência e dar provas de uma real coragem intelectual, até o dia
em que um perigo mortal o obrigou a partir.
Anteriormente, um novo e decisivo obstáculo lhe viera de seu casamento,
tornando um abismo o fosso profundo das castas que já o isolava. Como
dissemos, casara-se com Pítia. Ora, ela era sobrinha e filha adotiva de um liberto,
Hérmias, três vezes vendido como escravo. Embora tivesse reinado sobre
Atárnea cidadezinha da costa do Oriente Médio, nada podia apagar sua origem,
nem sua triste condição de eunuco. Os melhores amigos de Aristóteles, que
sempre o haviam defendido diante da opinião pública ateniense, quiseram que
esse casamento não fosse realizado, mas são conhecidas as razões decoração e
de reconhecimento que impulsionaram o Estagirita a ir adiante.
Assim, a posição de Aristóteles com relação ao meio em que viveu mostra-se
inteiramente particular. Jamais se envolveu com política prática. Sua condição de
“meteco” e seu mau casamento o teriam impedido, na falta de motivos
intelectuais mais profundos. Não podia, portanto, chegar ao conhecimento do
Estado senão através dos estudos históricos e da observação dos
acontecimentos em que não devia intervir diretamente. Não possuindo nem os
direitos, nem os reflexos de um cidadão, ele se viu fora, senão acima, das brigas
de partido. A própria força dos acontecimentos o situava na posição de
observador objetivo e desinteressado. Não devia, com seu mestre Platão,
esperar uma reviravolta política, nem, com Demóstenes, lançar-se com todas as
forças na luta, como herói trágico. Como estrangeiro, pensa, senão em
conformidade com seus anfitriões, pelo menos fora de suas correntes políticas
ordinárias. Como filósofo, também conquistou esta “coragem do isolamento” – de
que ainda fala Paul Bureau; leva outra vida; realiza outros estudos; constrói outro
sistema; segue seu próprio caminho, combatido por seus êmulos, mas cercado
de discípulos.
É em meio a estes últimos que devemos agora considerálo para compreender
a extensão e a execução de sua obra política. O espetáculo, sem dúvida, não é o
que nos propõem “as atitudes nobres e estilizadas da Escola de Atenas, ou, no
extremo oposto, a atmosfera monótona e fechada de nossos anfiteatros da
Sorbonne. Mas é extremamente provável que… o encanto e a liberdade só
pudessem vir de fora, das árvores próximas, consagradas ao deus da música, da
luz trêmula que banhava as colinas atenienses”. Porque a Escola é chamada
peripatética, erraríamos se reduzíssemos todos os seus exercícios a uma
espécie de recreação espiritual, semelhante à de Péguy e seus companheiros ao
redor da “Cour rose”, ou ainda M. Verdier e seus clérigos “rodando” nos
caminhos do trágico jardim do Carmo. A Escola é um grupo laborioso que se
empenhou em todos os domínios do saber. O mestre não ensina ali apenas o
que ele próprio observou…