Jorge Amado
Capitães da areia
Editora: Record
Matilde:
Jogávamos jogos de prenda.
Andávamos de carro de boi.
Morávamos em casa mal-assombrada.
Conversávamos com moças e mágicos.
Achavas a Bahia imensa e misteriosa.
A poesia deste livro vem de ti.
Para Aydano do Couto Ferras, José Olympio, José
Américo de Almeida, João Nascimento Filho e
para Anísio Teixeira, amigo das crianças.
Cartas à redação
CRIANÇAS LADRONAS
AS AVENTURAS SINISTRAS DOS “CAPITÃES DA AREIA” – A CIDADE
INFESTADA POR CRIANÇAS QUE VI VEM DO FURTO – URGE UMA
PROVIDÊNCIA DO JUIZ DE MENORES E DO CHEFE DE POLÍCIA – ONTEM
HOUVE MAIS UM ASSALTO
Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas
aspirações da população baiana, tem trazido noticias sobre a atividade criminosa dos
“Capitães da Areia”, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e
ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à
tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia
ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde
escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo jus a uma
imediata providência do Juiz de Menores e do doutor Chefe de Polícia.
Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior
a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que,
naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de
sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. São
chamados de “Capitães da Areia” porque o cais é o seu quartel-general. E têm por
comandante um mascote dos seus 14 anos, que é o mais terrível de todos, não só
ladrão, como já autor de um crime de ferimentos graves, praticado na tarde de
ontem. Infelizmente a Identidade deste chefe é desconhecida.
O que se faz necessário é uma urgente providência da policia e do juizado de
menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces
criminosos, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido, aos
Institutos de reforma de crianças ou às prisões. Passemos agora a relatar o assalto de
ontem, do qual foi vítima um honrado comerciante da nossa praça, que teve sua
residência furtada em mais de um conto de réis e um seu empregado ferido pelo
desalmado chefe dessa malta de jovens bandidos.
NA RESIDÊNCIA DO COMENDADOR JOSE FERREIRA
No Corredor da Vitória, coração do mais chique bairro da cidade, se eleva a bela
vivenda do Comendador José Ferreira, dos mais abastados e acreditados negociantes
desta praça, com loja de fazendas na rua Portugal. É um gosto ver o palacete do
comendador, cercado de jardins, na sua arquitetura colonial. Pois ontem esse
remanso de paz e trabalho honesto passou uma hora de indescritível agitação e susto
com a invasão que sofreu por parte dos “Capitães da Areia”.
Os relógios badalavam as três horas da tarde e a cidade abafava de calor quando o
jardineiro notou que algumas crianças vestidas de molambos rondavam o jardim da
residência do comendador. O jardineiro tratou de afastar da frente da casa aqueles
incômodos visitantes. E, como eles continuassem o seu caminho, descendo a rua,
Ramiro, o jardineiro, volveu ao seu trabalho nos jardins do fiando do palacete.
Minutos depois, porém, era o
ASSALTO
Não tinham passado ainda cinco minutos quando o jardineiro Ramiro ouviu gritos
assustados vindos do interior da residência. Eram gritos de pessoas terrivelmente
assustadas. Armando-se de uma foice o jardineiro penetrou na casa e mal teve tempo
de ver vários moleques que, como um bando de demônios na expressão curiosa de
Ramiro, fugiam saltando as janelas, carregados com objetos de valor da sala de
jantar. A empregada que havia gritado estava cuidando da senhora do comendador,
que tivera um ligeiro desmaio em virtude do susto que passara. O Jardineiro dirigiu-
se às pressas para o jardim, onde teve lugar a
LUTA
Aconteceu que no jardim a linda criança que é Raul Ferreira, de 11 anos, neto do
comendador, que se achava de visita aos avós, conversava com o chefe dos
“Capitães da Areia”, que é reconhecível devido a um talho que tem no rosto. Na sua
inocência, Raul ria para o malvado, que sem dúvida pensava em furtá-lo. O
jardineiro se atirou então em cima do ladrão. Não esperava, porém, pela reação do
moleque, que se revelou um mestre nestas brigas. E o resultado é que, quando
pensava ter seguro o chefe da malta, o jardineiro recebeu uma punhalada no ombro e
logo em seguida outra no braço, sendo obrigado a largar o criminoso, que fugiu.
A polícia tomou conhecimento do fato, mas até o momento que escrevemos a
presente nota nenhum rastro dos “Capitães da Areia” foi encontrado. O Comendador
José Ferreira, ouvido pela nossa reportagem, avalia o seu prejuízo em mais de um
conto de réis, pois só o pequeno relógio de sua esposa estava avaliado em 900$ e foi
furtado.
URGE UMA PROVIDÊNCIA
Os moradores do aristocrático bairro estão alarmados e receosos de que os assaltos
se sucedam, pois este não é o primeiro levado a efeito pelos “Capitães da Areia”.
Urge uma providência que traga para semelhantes malandros um justo castigo e o
sossego para as nossas mais distintas famílias. Esperamos que o ilustre chefe de
polícia e o não menos ilustre doutor Juiz de Menores saberão tomar as devidas
providências contra esses criminosos tão Jovens e já tão ousados.
A OPINIÃO DA INOCÊNCIA
A nossa reportagem ouviu também o pequeno Raul, que, como dissemos, tem onze
anos e já é dos ginasianos mais aplicados do Colégio Antônio Vieira. Raul mostrava
uma grande coragem, e nos disse acerca da sua conversa com o terrível chefe dos
“Capitães da Areia”.
– Ele disse que eu era um tolo e não sabia o que era brincar. Eu respondi que tinha
uma bicicleta e muito brinquedo. Ele riu e disse que tinha a rua e o cais. Fiquei
gostando dele, parece um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar
aventuras.
Ficamos então a pensar neste outro delicado problema para a infância que é o
cinema, que tanta idéia errada infunde às crianças acerca da vida. Outro problema
que está merecendo a atenção do doutor Juiz de Maiores. A ele volveremos.
Reportagem publicada no Jornal da Tarde, na página de “Fatos
Policiais”, com um clichê da casa do comendador e um deste no
momento em que era condecorado.
CARTA DO SECRETÁRIO DO CHEFE DE POLÍCIA À REDAÇÃO DO
JORNAL DA TARDE
“Sr. diretor do Jornal da Tarde
Cordiais saudações.
Tendo chegado ao conhecimento do doutor chefe de polícia a reportagem publicada
ontem na segunda edição desse jornal sobre as atividades dos “Capitães da Areia”,
bando de crianças delinqüentes, e o assalto levado a efeito por este mesmo bando na
residência do comendador José Ferreira, o doutor chefe de polícia se apressa a
comunicar à direção deste jornal que a solução do problema compete antes ao juiz
de maiores que à policia. A polícia neste caso deve agir em obediência a um pedido
do doutor Juiz de Menores. Mas que, no entanto, vai tomar sérias providências para
que semelhantes atentados não se repitam e para que os autores do de anteontem
sejam presos para sofrerem o castigo merecido.
Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não merece nenhuma crítica pela
sua atitude em face desse problema. Não tem agido com maior eficiência porque não
foi solicitada pelo juiz de menores.
Cordiais saudações.
Secretário do Chefe de Policia.”
Publicada em primeira página do Jornal da Tarde, com clichê do chefe
de polícia e um vasto comentário elogioso.
CARTA DO DOUTOR JUIZ DE MENORES À REDAÇÃO DO JORNAL DA
TARDE
“Exmo. Sr. diretor do Jornal da Tarde.
Cidade do Salvador
Neste Estado.
Meu caro patrício.
Cordiais saudações.
Folheando, num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas
preocupações do meu espinhoso cargo, o vosso brilhante vespertino, tomei
conhecimento de uma epístola do infatigável doutor chefe de polícia do Estado, na
qual dizia dos motivos por que a polícia não pudera até a data presente intensificar a
meritória campanha contra os menores delinqüentes que infestam a nossa urbe.
Justifica-se o doutor chefe de polícia declarando que não possuía ordens do juizado
de menores no sentido de agir contra a delinqüência infantil. Sem querer
absolutamente culpar a brilhante e infatigável chefia de polícia, sou obrigado, a bem
da verdade essa mesma verdade que tenho colocado como o farol que ilumina a
estrada da minha vida com a sua luz puríssima, a declarar que a desculpa não
procede. Não procede, senhor diretor, porque ao juizado de menores não compete
perseguir e prender os menores delinqüentes e, sim, designar o local onde…