Casa Velha – Machado de Assis

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Casa Velha 

  
Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
  
Publicado originalmente em A Estação , de 15/01/1885 a 28/02/1886 
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
CAPÍTULO PRIMEIRO 
ANTES E DEPOIS DA MISSA  
  
Aqui  está  o  que  contava,  há  muitos  anos,  um  velho  cônego  da  Capela 
Imperial: 
  
—  Não  desejo  ao  meu  maior  inimigo  o  que  me  aconteceu  no  mês  de 
abril de 1839. Tinha-me dado na cabeça escrever uma  obra política, a 
história do reinado de D. Pedro I. Até então esperdiçara algum talento 
em décimas e sonetos, muitos artigos de periódicos, e alguns sermões, 
que  cedia  a  outros,  depois  que  reconheci  que  não  tinha  os  dons 
indispensáveis  ao  púlpito.  No  mês  de  agosto  de  1838  li  as Memórias 
que  outro  padre,  Luís  Gonçalves  dos  Santos,  o  padre  Perereca 
chamado, escreveu do tempo do rei, e foi esse livro que me meteu em 
brios. Achei-o seguramente medíocre, e quis mostrar que um membro 
da igreja brasileira podia fazer coisa melhor. 
  
Comecei  logo  a  recolher  os  materiais  necessários,  jornais,  debates, 
documentos públicos,  e a tomar notas de toda a parte  e de tudo.  No 
meado  de  fevereiro,  disseram-me  que,  em  certa  casa da  cidade, 
acharia,  além  de  livros,  que  poderia  consultar,  muitos  papéis 
manuscritos,  alguns  reservados,  naturalmente  importantes,  porque  o 
dono  da  casa,  falecido  desde  muitos  anos,  havia  sido  ministro  de 
Estado. Compreende-se que esta notícia me aguçasse  a curiosidade. A 
casa, que tinha capela para uso da família e dos moradores próximos, 
tinha também um padre contratado para dizer missa a os domingos, e 
confessar pela quaresma: era o rev. Mascarenhas. Fui ter com ele para 
que me alcançasse da viúva a permissão de ver os papéis. 
  
— Não sei se lhe consentirá isso, disse-me ele; mas vou ver. 
  
— Por que não há de consentir? É claro que não me ut ilizarei senão do 
que for possível, e com autorização dela. 
  

— Pois sim, mas é que livros e papéis estão lá em grande respeito. Não 
se mexe  em nada que  foi do marido, por uma espécie  de veneração, 
que a boa senhora conserva e sempre conservará. Mas  enfim vou ver, 
e far-se-á o que for possível. 
  
Mascarenhas  trouxe-me  a  resposta  dez  dias  depois.  A  viúva  começou 
recusando;  mas  o  padre  instou,  expôs  o  que  era,  disse-lhe  que  nada 
perdia  do  devido  respeito  à  memória  do  marido  consentindo  que 
alguém  folheasse  uma  parte  da  biblioteca  e  do  arquivo,  uma  parte 
apenas;  e  afinal  conseguiu,  depois  de  longa  resistência,  que  me 
apresentasse  lá.  Não  me  demorei  muito  em  usar  do  favor;  e  no 
domingo próximo acompanhei o Padre Mascarenhas. 
  
A  casa,  cujo  lugar  e  direção  não  é  preciso  dizer,  tinha  entre  o  povo  o 
nome  de  Casa  Velha,  e  era-o  realmente:  datava  dos  fins  do  outro 
século.  Era  uma  edificação  sólida  e  vasta,  gosto  severo,  nua  de 
adornos.  Eu,  desde  criança,  conhecia-lhe  a  parte  exterior,  a  grande 
varanda  da  frente,  os  dois  portões  enormes,  um  especial  às  pessoas 
da família e às visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas que iam 
e  vinham,  às  seges,  ao  gado  que  saía  a  pastar.  Além  dessas  duas 
entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que 
dava  acesso  às  pessoas  da  vizinhança,  que  ali  iam  ouvir  missa  aos 
domingos, ou rezar a ladainha aos sábados. 
  
Foi  por  esse  caminho  que  chegamos  à  casa,  às  sete  horas  e  poucos 
minutos.  Entramos  na  capela,  após  um  raio  de  sol,  que  brincava  no 
azulejo  da  parede  interior  onde  estavam  representados  vários  passos 
da  Escritura.  A  capela  era  pequena,  mas  muito  bem  tratada.  Ao  rés-
do-chão, à esquerda, perto do altar, uma tribuna servia privativamente 
à dona da casa, e às senhoras da família ou hóspeda s, que entravam 
pelo interior; os homens, os fâmulos e vizinhos ocupavam o corpo da 
igreja.  Foi  o  que  me  disse  o  padre  Mascarenhas  explicando  tudo. 
Chamou-me a atenção para os castiçais de prata, para as toalhas finas 
e alvíssimas, para o chão em que não havia uma palha. 
  
— Todos os paramentos são assim, concluiu ele. E est e confessionário? 
Pequeno, mas um primor. 
  
Não  havia  coro  nem  órgão.  Já  disse  que  a  capela  era  pequena;  em 
certos dias, a concorrência à missa era tal que até na soleira da porta 
vinham  ajoelhar-se  fiéis.  Mascarenhas  fez-me  notar à  esquerda  da 
capela  o  lugar  em  que  estava  sepultado  o  ex-ministro.  Tinha-o 
conhecido,  pouco  antes  de  1831,  e  contou-me  algumas  
particularidades  interessantes;  falou-me  também  da  piedade  e 
saudade  da  viúva,  da  veneração  em  que  tinha  a  memória  dele,  das 
relíquias que guardava, das alusões freqüentes na conversação. 
  
— Lá verá na biblioteca o retrato dele, disse-me. Começaram a entrar na 
igreja  algumas  pessoas  da  vizinhança,  em  geral  pobres,  de  todas  as 
idades e cores. Dos homens alguns, depois de persignados e rezados, 
saíam,  outra  vez,  para  esperar  fora,  conversando,  a  hora  da  missa. 
Vinham também escravos da casa. Um destes era o pró prio sacristão; 
tinha  a  seu  cargo,  não  só  a  guarda  e  asseio  da  capela,  mas  também 

ajudava  a  missa,  e,  salvo  a  prosódia  latina,  com  muita  perfeição. 
Fomos  achá-lo  diante  de  uma  grande  cômoda  de  jacarandá  antigo, 
com  argolas  de  prata  nos  gavetões,  concluindo  os  ar ranjos 
preparatórios. Na sacristia, entrou logo depois um moço de vinte anos 
mais ou menos, simpático, fisionomia meiga e franca, a quem o padre 
Mascarenhas me apresentou; era o filho da dona da casa, Félix. 
  
— Já sei, disse ele sorrindo, mamãe me falou de V. R evma. Vem ver o 
arquivo de papai? 
  
Confiei-lhe  rapidamente  a  minha  idéia,  e  ele  ouviu-me  com  interesse. 
Enquanto falávamos vieram outros homens de dentro,  um sobrinho do 
dono  da  casa,  Eduardo,  também  de  vinte  anos,  um  velho  parente, 
coronel Raimundo, e uns dois ou três hóspedes. Félix apresentou-me a 
todos,  e,  durante  alguns  minutos,  fui  naturalmente objeto  de  grande 
curiosidade.  Mascarenhas,  paramentado  e  de  pé,  com o  cotovelo  na 
borda da cômoda, ia dizendo alguma coisa, pouca; ou via mais do que 
falava,  com  um  sorriso  antecipado  nos  lábios,  voltando  a  cabeça  a 
miúdo  para  um  ou  outro.  Félix  tratava-o  com  benevolência  e  até 
deferência;  pareceu-me  inteligente,  lhano  e  modesto.  Os  outros 
apenas faziam coro. O coronel não fazia nada mais que confessar que 
tinha fome; acordara cedo e não tomara café. 
  
— Parece que são horas, disse Félix; e, depois de ir à porta da capela: — 
Mamãe já está na tribuna. Vamos? 
  
Fomos. Na tribuna estavam quatro senhoras, duas ido sas e duas moças. 
Cumprimentei-as  de  longe,  e,  sem  mais  encará-las,  percebi  que 
tratavam de mim, falando umas às outras. Felizmente  o padre entrou 
daí a três minutos, ajoelhamo-nos todos, e seguiu-se a missa que, por 
fortuna  do  coronel,  foi  engrolada.  Quando  acabou,  Félix  foi  beijar  a 
mão à mãe e à outra senhora idosa, tia dele; levou-me e apresentou-
me ali mesmo a ambas. Não falamos do meu projeto; t ão-somente a 
dona da casa disse-me delicadamente: 
  
— Está entendido que V. Revmª. faz-nos a honra de almoçar conosco? 
  
Inclinei-me afirmativamente. Não me lembrou sequer  acrescentar que a 
honra era toda minha. 
  
A  verdade  é  que  me  sentia  tolhido.  Casa,  hábitos,  pessoas  davam-me 
ares  de  outro  tempo,  exalavam  um  cheiro  de  vida  clássica.  Não  era 
raro  o  uso  de  capela  particular;  o  que  me  pareceu  único  foi  a 
disposição  daquela,  a  tribuna  de  família,  a  sepultura  do  chefe,  ali 
mesmo, ao pé dos seus, fazendo lembrar as primitiva s sociedades em 
que  florescia  a  religião  doméstica  e  o  culto  privado  dos  mortos.  Logo 
que as senhoras saíram da tribuna, por uma porta interior, voltamos à 
sacristia,  onde  o  padre  Mascarenhas  esperava  com  o coronel  e  os 
outros. Da porta da sacristia, passando por um saguão, descemos dois 
degraus para um pátio, vasto, calçado de cantaria, com uma cisterna 
no  meio.  De  um  lado  e  outro  corria  um  avarandado,  ficando  à 
esquerda  alguns  quartos,  e  à  direita  a  cozinha  e  a copa.  Pretas  e 
moleques  espiavam-me,  curiosos,  e  creio  que  sem  espanto,  porque 

naturalmente  a  minha  visita  era  desde  alguns  dias  a  preocupação  de 
todos. Com efeito, a casa era uma espécie de vila ou fazenda, onde os 
dias,  ao  contrário  de  um  rifão  peregrino,  pareciam-se  uns  com  os 
outros;  as  pessoas  eram  as  mesmas,  nada  quebrava  a uniformidade 
das coisas, tudo quieto e patriarcal. 
  
D.  Antônia  governava  esse  pequeno  mundo  com  muita  d iscrição, 
brandura e justiça. Nascera dona de casa; no próprio tempo em que a 
vida  política  do  marido,  e  a  entrada  deste  nos  conselhos  de  Pedro  I 
podiam tirá-la do recesso e da obscuridade, só a custo e raramente os 
deixou.  Assim  é  que,  em  todo  o  ministério  do  marido,  apenas  duas 
vezes foi ao paço. Era filha de Minas Gerais, mas foi criada no Rio de 
Janeiro,  naquela  mesma  Casa  Velha,  onde  casou,  onde  perdeu  o 
marido  e  onde  lhe  nasceram  os  filhos  —  Félix,  e  uma menina  que 
morreu  com  três  anos.  A  casa  fora  construída  pelo  avô,  em  1780, 
voltando  da  Europa,  de  onde  trouxe  idéias  de  solar e  costumes 
fidalgos;  e  foi  ele,  e  parece  que  também  a  filha,  mãe  de  D.  Antônia, 
quem  deu  a  esta  a  pontazinha  de  orgulho,  que  se  lhe  podia  notar,  e 
quebrava  a  unidade  da  índole  desta  senhora,  essencialmente  chã. 
Inferi  isso  de  algumas  anedotas  que  ela  me  contou  de  ambos,  no 
tempo do rei. D. Antônia era antes baixa que alta, magra, muito bem 
composta,  vestida  com  singeleza  e  austeridade;  devia  ter  quarenta  e 
seis a quarenta e oito anos. 
  
Poucos minutos depois estávamos almoçando. O corone l, que afirmava, 
rindo,  ter  um  buraco  de  palmo  no  estômago,  nem  por isso  comeu 
muito,  e  durante  os  primeiros  minutos,  não  disse  nada;  olhava  para 
mim,  obliquamente,  e,  se  dizia  alguma  coisa,  era  baixinho,  às  duas 
moças,  filhas  dele;  mas  desforrou-se  para  o  fim,  e não  conversava 
mal.  Félix,  eu  e  o  padre  Mascarenhas  falávamos  de  política,  do 
ministério  e  dos  sucessos  do  Sul.  Notei  desde  logo,  no  filho  do 
ministro,  a  qualidade  de  saber  escutar,  e  de  dissentir  parecendo 
aceitar o conceito alheio, de tal modo que, às vezes, a gente recebia a 
opinião devolvida por ele, e supunha ser a mesma qu e emitira. Outra 
coisa  que  me  chamou  a  atenção  foi  que  a  mãe,  percebendo  o  prazer 
com  que  eu  falava  ao  filho,  parecia  encantada  e  org ulhosa. 
Compreendi que ela herdara as naturais esperanças d o pai, e redobrei 
de atenção com o filho. Fi-lo sem esforço; mas pode ser também que 
entrasse  por  alguma  coisa,  naquilo,  a  necessidade  de  captar  toda  a 
afeição da casa, por motivo do meu projeto. 
  
Foi  só  depois  do  almoço  que  falamos  do  projeto.  Passamos  à  varanda, 
que comunicava com a sala de jantar, e dava para um  grande terreiro; 
era toda ladrilhada, e tinha o teto sustentado  por grossas  colunas de 
cantaria.  D.  Antônia  chamou-me,  sentei-me  ao  pé  dela,  com  o  Padre 
Mascarenhas. 
  
— Reverendíssimo, a casa está às suas ordens, disse-me ela. Fiz o que o 
Sr. Padre Mascarenhas  me pediu, e a muito custo, nã o porque o não 
julgue  pessoa  capaz,  mas  porque  os  livros  e  papéis de  meu  marido 
ninguém mexe neles. 
  
— Creia que agradeço muito… 

  
—  Pode  agradecer,  interrompeu  ela  sorrindo;  não  faria  isto  a  outra 
pessoa. Precisa ver tudo? 
  
— Não posso dizer se tudo; depois de um rápido exame , saberei mais ou 
menos o que preciso. E V. Ex.ª também há de ser um  livro para mim, 
e o melhor livro, o mais íntimo… 
  
— Como? 
  
—  Espero  que  me  conte  algumas  coisas,  que  hão  de  ter   ficado 
escondidas. As histórias fazem-se  em parte  com as notícias pessoais. 
V. Exª., esposa de ministro… 
  
D. Antônia deu de ombros. 
  
— Ah! eu nunca entendi de política; nunca me meti nessas coisas. 
  
—  Tudo  pode  ser  política,  minha  senhora;  uma  anedota,  um  dito, 
qualquer coisa de nada, pode valer muito. 
  
Foi  neste  ponto  que  ela  me  disse  o  que  acima  referi;  vivia  em  casa, 
pouco saía, e só foi ao paço duas vezes. Confessou até que da primeira 
vez  teve  muito  medo,  e  só  o  perdeu  por  se  lembrar  a  tempo  de  um 
dito do avô. 
  
—  Saí  de  casa  tremendo.  Era  dia  de  gala,  ia  trajada à  Corte;  pelas 
portinholas do coche via muita gente olhando, parada. Mas quando me 
lembrava  que  tinha  de  cumprimentar  o  imperador  e  a imperatriz, 
confesso que  o  coração me batia muito. Ao descer do coche, o medo 
cresceu,  e  ainda  mais  quando  subi  as  escadas  do  paço.  De  repente, 
lembrou-me um dito de meu avô. Meu avô, quando aqui  chegou o rei, 
levou-me  a  ver  as  festas  da  cidade,  e,  como  eu,  ainda  mocinha, 
impressionada,  lhe  dissesse  que  tinha  medo  de  encarar  o  rei,  se  ele 
aparecesse na rua, olhou para mim, e disse com um m odo muito sério 
que  ele  tinha  às  vezes:  “Menina,  uma  Quintanilha  não  treme  nunca!” 
Foi  o  que  fiz,  lembrou-me  que  uma  Quintanilha  não  tremia,  e,  sem 
tremer, cumprimentei Suas Majestades. 
  
Rimo-nos  todos.  Eu,  pela  minha  parte,  declarei  que  aceitava  a 
explicação  e  não  lhe  pediria  nada;  e  depois  falei  de  outras  coisas. 
Parece  que  estava  de  veia,  se  não  é  que  a  conversação  da  viúva  me 
meteu  em  brios.  Veio  o  filho,  veio  o  cunhado,  vieram  as  moças,  e 
posso  afirmar  que  deixei  a  melhor  impressão  em  todos;  foi  o  que  o 
Padre Mascarenhas me confirmou, alguns dias depois,  e foi o que notei 
por mim mesmo. 
  
  
  
CAPÍTULO II 
  
Antes  de  me  despedir  deles,  fui  ver  a  biblioteca.  Era  uma  vasta  sala, 
dando  para  a  chácara,  por  meio  de  seis  janelas  de  grade  de  ferro, 

abertas de um só lado. Todo o lado oposto estava forrado de estantes, 
pejadas de livros. Estes eram, pela maior parte, antigos, e muitos in-
fólio;  livros  de  história,  de  política,  de  teologia,  alguns  de  letras  e 
filosofia, não raros em latim e italiano. Eu via-os, tirava e abria um ou 
outro,  dizia  alguma  palavra,  que  o  Félix,  que  ia  comigo,  ouvia  com 
muito  prazer,  porque  as  minhas  reflexões  redundavam  em  elogio  do 
pai,  ao  mesmo  tempo  que  lhe  davam  de  mim  maior  idéia.  Esta  idéia 
cresceu  ainda,  quando  casualmente  dei  com  os  olhos  na Storia 
Fiorentina  de  Varchi,  edição  de  1721.  Confesso  que  nunca  tinha  lido 
esse livro, nem mesmo o li mais tarde; mas um padre  italiano, que eu 
visitara  no  Hospício  de  Jerusalém,  na  antiga  Rua  dos  Barbonos, 
possuía  a  obra  e  falara-me  da  última  página,  que,  em  alguns 
exemplares  faltava,  e  tratava  do  modo  descomunalmente  sacrílego  e 
brutal com que um dos Farneses tratara o bispo de Fano. 
  
— Será o exemplar truncado? disse eu. 
  
— Truncado? repetiu Félix. 
  
— Vamos ver, continuei eu, correndo ao fim. Não, cá  está; é o cap. 16 
do  lv.  XVI.  Uma  coisa  indigna: In  quest’anno  medesimo  nacque  un 
caso… Não vale a pena ler; é imundo. 
  
Pus  o  livro  no  lugar.  Sem  olhar  para  o  Félix,  senti-o  subjugado.  Nem 
confesso  este  incidente,  que  me  envergonha,  senão  porque,  além  da 
resolução  de  dizer  tudo,  importa  explicar  o  poder  que  desde  logo 
exerci naquela casa, e especialmente no espírito do moço. Creram-me 
naturalmente  um  sábio,  tanto  mais  digno  de  admiração,  quanto  que 
contava  apenas  trinta e  dois  anos.  A  verdade  é  que era  tão-somente 
um  homem  lido  e  curioso.  Entretanto,  como  era  também  discreto, 
deixei  de  manifestar  um  reparo  que  fiz  comigo  acerc a  de 
promiscuidade  de  coisas  religiosas  e  incrédulas,  alguns  padres  de 
Igreja não longe de Voltaire e Rousseau, e aqui não havia afetar nada, 
porque  os  conhecia,  não  integralmente,  mas  no  principal  que  eles 
deixaram.  Quanto  à  parte  que  imediatamente  me  interessava,  achei 
muitas  coisas,  opúsculos,  jornais,  livros,  relatórios,  maços  de  papéis 
rotulados e postos por ordem, em pequenas estantes,  e duas grandes 
caixas que o Félix me disse estarem cheias de manuscritos. 
  
Havia  ali  dois  retratos,  um  do  finado  ex-ministro, outro  de  Pedro  I. 
Conquanto a luz não fosse boa, achei que o Félix parecia-se muito com 
o pai, descontada a idade, porque o retrato era de 1829, quando o ex-
ministro  tinha  quarenta  e  quatro  anos.  A  cabeça  era  altiva,  o  olhar 
inteligente,  a  boca  voluptuosa;  foi  a  impressão  que  me  deixou  o 
retrato. Félix não tinha, porém, a primeira nem a última expressão; a 
semelhança  restringia-se  à  configuração  do  rosto,  ao  corte  e  viveza 
dos olhos. 
  
— Aqui está tudo, disse-me Félix; aquela porta dá para uma saleta, onde 
poderá trabalhar, quando quiser, se não preferir aqui mesmo. 
  
Já disse que saí de lá encantado, e que os deixei igualmente encantados 
comigo.  Comecei  os  meus  trabalhos  de  investigação  três  dias  depois. 

Só  então  revelei  a  Monsenhor  Queirós,  meu  velho  mestre,  o  projeto 
que tinha de escrever uma história do Primeiro Reinado. E revelei-lho 
com  o  único  fim  de  lhe  contar  as  impressões  que  trouxera  da  Casa 
Velha,  e  confiar  as  minhas  esperanças  de  algum  achado  de …

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