Clara Dos Anjos – Lima Barreto

5/5 - (1 voto)
Página: 1 de 1

Prévia do Conteúdo do PDF:

1
MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro

CLARA DOS ANJOS
Lima Barreto

I

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava de violão
e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas,
não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do
famoso Calado e das suas polcas, uma das quais – “Cruzes, minha prima!” ¾ é uma lembrança
emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a
flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes,
reabilitar o mavioso instrumento – delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio
Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a
que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma
importância. Voltou a ser novamente plebeu.
Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos
acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e
acompanhamentos de modinhas.
Uma polca sua – “Siri sem unha” – e uma valsa – “Mágoas do coração”- tiveram algum
sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de
músicas e pianos da Rua do Ouvidor.
O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que
tivesse estudado.
Aprendeu a “artinha” musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em
cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar.
Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais.
Ficara na “artinha” de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além.
Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida.
Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte
e dois anos, aceitara o convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava a explorar
terras e terrenos diamantíferos. Todos julgavam que o “seu” mister andasse fazendo isso; a verdade,
porém, é que o sábio inglês fazia estudos desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas
geológicas e mineralógicas. O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava
em ver, pelos arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que um
inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite, tomando notas e com uns instrumentos
rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio do mister
convencer à simplória gente do lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que
o súdito de Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que
forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou quais indícios, seguros
aos olhos de “garimpeiro” experimentado.
Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia, encaixotador,
servente, etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o sábio, que este, ao dar por terminadas as
suas pesquisas, o convidou a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua

2
pedregulhenta ou pedregosa bagagem, até que ela fosse posta a bordo. O sábio comprometeu-se a
pagar-lhe a estadia no Rio, o que fez, até embarcar-se para a Europa.
Deu-lhe dinheiro para voltar, um chapéu de cortiça, umas perneiras, um cachimbo e uma
lata de fumo Navy Cut; Joaquim já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no mês e pouco em que
estivera aqui, a serviço do Senhor John Herbert Brown, da Real Sociedade de Londres; e resolveu
não voltar para Diamantina. Vendeu as perneiras num belchior e o chapéu de cortiça também; e
pôs-se a fumar o saboroso fumo inglês no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando pelo Rio,
enquanto teve dinheiro. Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para
o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro.
– Não te darei coisa que valha a pena – disse-lhe logo o doutor – mas aqui irás travando
conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde.
Viu bem que o “doutor” lhe falava a verdade, e toda sua ambição se cifrou em obter um
pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia
fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros,
com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que mere- cera sucessivas
promoções.
Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho
único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira.
Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e
era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou
o resto em prestações. Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu
“buraco”, como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples. Tinha dois quartos; um que dava
para a sala de visitas e outro para a sala de jantar, aquele ficava à direita e este à esquerda de quem
entrava nela. À de visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. Correspondendo a pouco mais
de um terço da largura total da casa, havia, nos fundos, um puxadito, onde estavam a cozinha e uma
despensa minúscula. Comunicava-se esse puxadito com a sala de jantar por uma porta; e a
despensa, à esquerda, apertava o puxado, a jeito de um curto corredor, até à cozinha, que se
alargava em toda a largura dele. A porta que o ligava à sala de jantar ficava bem junto daquela, por
onde se ia dessa sala para o quintal. Era assim o plano da propriedade de Joaquim dos Anjos.
Fora do corpo da casa, existia um barracão para banheiro, tanque, etc., e o quintal era de
superfície razoável, onde cresciam goiabeiras, dois pés ou três de laranjeiras, um de limão-galego,
mamoeiros e um grande tamarineiro copado, bem aos fundos.
A rua em que estava situada a sua casa se desenvolvia no plano e, quando chovia,
encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das
margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros,
autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros
que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública
devia merecer mais atenção da edilidade.
Era uma rua sossegada e toda ela, ou quase toda, edificada ao gosto antigo do subúrbio, ao
gosto do chalet. Estava povoada e edificada quase inteiramente, de um lado e de outro. Dela,
descortinava-se um lindo panorama de montanhas de cores cambiantes, conforme fosse a hora do
dia e o estado da atmosfera. Ficavam-lhe muito distantes, mas pareciam cercá- la, e ela, a rua, ser o
eixo daquele redondel de montes, em que, pelo dia em fora, pareciam ser iluminados por projeções
luminosas, revestindo-se de toda a gama do verde, de tons azuis; e, pelo crepúsculo, ficavam
cobertos de ouro e púrpura.
Além dos clássicos chalets suburbanos, encontravam-se outros tipos de casas. Algumas
relativamente recentes, uns certos requififes e galanteios modernos, para lhes encobrir a estreiteza
dos cômodos e justificar o exagero dos aluguéis. Havia, porém, uma casa digna de ser vista. Erguia-
se quase ao centro de uma grande chácara e era a característica das casas das velhas chácaras dos
outros tempos; longa fachada, pouco fundo, teto acaçapado, forrada de azulejos até a metade do pé
direito. Um tanto feia, é verdade, que ela era, sem garridice; mas casando-se perfeitamente com as

3
mangueiras, com as robustas jaqueiras e os coqueiros petulantes e com todas aquelas grandes e
pequenas árvores avelhantadas, que, talvez, os que as plantaram não as tivessem visto frutificar. Por
entre elas, onde se podiam ver vestígios do antigo jardim, havia estatuetas de louça portuguesa,
com letreiros azuis. Uma era a “Primavera”; outra era a “Aurora”; quase todas, porém, estavam
mutiladas; umas, num braço; outras não tinham cabeça, e ainda outras jaziam no chão, derrubadas
dos seus toscos suportes.
Os muros que cercavam a casa, a razoável distância, e mesmo aquele em que se apoiava o
gradil de ferro da frente do imóvel, estavam cobertos de hera, que os envolvia em todo ou em parte,
não como um sudário, mas como um severo, cerimonioso e vivo manto de…

Conteúdo Relacionado: