Confissões – Santo Agostinho

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CONFISSÕES

SANTO AGOSTINHO

Digitação: Lucia Maria Csernik
2007

LIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO I

Louvor e Invocação

És grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder, e
incomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criação quer louvar-te, e
precisamente o homem que, revestido de sua mortalidade, traz em si o testemunho do pecado e a
prova de que resistes aos soberbos. Todavia, o homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te.
Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está
inquieto enquanto não encontrar em ti descanso.
Concede, Senhor, que eu bem saiba se é mais importante invocar-te e louvar-te, ou se
devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas alguém te invocará antes de te conhecer?
Porque, te ignorando, facilmente estará em perigo de invocar outrem. Porque, porventura, deves
antes ser invocado para depois ser conhecido? Mas como invocarão aquele em que não crêem?
Ou como haverão de crer que alguém lhos pregue?
Com certeza, louvarão ao Senhor os que o buscam, porque os que o buscam o encontram
e os que o encontram hão de louvá-lo.
Que eu, Senhor, te procure invocando-te, e te invoque crendo em ti, pois me pregaram teu
nome. invoca-te, Senhor, a fé que tu me deste, a fé que me inspiraste pela humanidade de teu
Filho e o ministério de teu pregador.

CAPÍTULO II

Deus está no homem, e este em Deus

E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invocá-lo o faria certamente
dentro de mim? E que lugar há em mim para receber o meu Deus, por onde Deus desça a mim, o
Deus que fez o céu e a terra? Senhor, haverá em mim algum espaço que te possa conter? Acaso
te contêm o céu e a terra, que tu criaste, e dentro dos quais também criaste a mim? Será, talvez,
pelo fato de nada do que existe sem Ti, que todas as coisas te contêm? E, assim, se existo, que
motivo pode haver para Te pedir que venhas a mim, já que não existiria se em mim não
habitásseis?
Ainda não estive no inferno, mas também ali estás presente, pois, se descer ao inferno, ali
estarás.
Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em mim; talvez seria
melhor dizer que eu não existiria de modo algum se não estivesse em ti, de quem, por quem e em
quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é. Como, pois, posso chamar-te se já
estou em ti, ou de onde hás de vir a mim, ou a que parte do céu ou da terra me hei de recolher,
para que ali venha a mim o meu Deus, ele que disse: Eu encho o céu e a terra?

CAPÍTULO III

Onde está Deus?

Porventura o céu e a terra te contêm, porque os enches? Ou será melhor dizer que os
enches, mas que ainda resta alguma parte de ti, já que eles não te podem conter? E onde
estenderás isso que sobra de ti, depois de cheios o céu e a terra? Mas será necessário que sejas
contido em algum lugar, tu que conténs todas as coisas, visto que as que enches as ocupas
contendo-as? Porque não são os vasos cheios de ti que te tornam estável, já que, quando se
quebrarem, tu não te derramarás; e quando te derramas sobre nós, isso não o fazes porque cais,
mas porque nos levantas, nem porque te dispersas, mas porque nos recolhes.
No entanto, todas as coisas que enches, enche-as todas com todo o teu ser; ou talvez, por
não te poderem conter totalmente todas as coisas, contêm apenas parte de ti? E essa parte de ti
as contêm todas ao mesmo tempo, ou cada uma a sua, as maiores a maior parte, e as menores a

menor parte? Mas haverá em ti partes maiores e partes menores? Acaso não estás todo em todas
as partes, sem que haja coisa alguma que te contenha totalmente?

CAPÍTULO IV

As perfeições de Deus

Que és, portanto, ó meu Deus? Que és, repito, senão o Senhor Deus? Ó Deus sumo,
excelente, poderosíssimo, onipotentíssimo, misericordiosíssimo e justíssimo.
Tao oculto e tão presente, formosíssimo e fortíssimo, estável e incompreensível; imutável,
mudando todas as coisas; nunca novo e nunca velho; renovador de todas as coisas, conduzindo à
ruína os soberbos sem que eles o saibam; sempre agindo e sempre repouso; sempre
sustentando, enchendo e protegendo; sempre criando, nutrindo e aperfeiçoando, sempre
buscando, ainda que nada te falte.
Amas sem paixão; tens zelos, e estás tranqüilo; te arrependes, e não tens dor; te iras, e
continuas calmo; mudas de obra, mas não de resolução; recebes o que encontras, e nunca
perdeste nada; não és avaro, e exiges lucro. A ti oferecemos tudo, para que sejas nosso devedor;
porém, quem terá algo que não seja teu, pois, pagas dívidas que a ninguém deves, e perdoas
dívidas sem que nada percas com isso?
E que é o que até aqui dissemos, meu Deus, minha vida, minha doçura santa, ou que
poderá alguém dizer quando fala de ti? Mas ai dos que nada dizem de ti, pois, embora seu muito
falar, não passam de mudos charlatães.

CAPÍTULO V

Súplica

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que viesses a meu coração e que o
embriagasses, para que eu me esqueça de minhas maldades e me abrace contigo, meu único
bem! Que és para mim? Tem piedade de mim, para que eu possa falar. E que sou eu para ti, para
que me ordenes amar-te e, se não o fizer, irar-te contra mim, ameaçando-me com terríveis
castigos? Acaso é pequeno o castigo de não te amar? Ai de mim! Dize-me por tuas misericórdias,
meu Senhor e meu Deus, que és para mim? Dize a minha alma: Eu sou a tua salvação. Que eu
ouça e siga essa voz e te alcance. Não queiras esconder-me teu rosto. Morra eu para que possa
vê-lo para não morrer eternamente.
Estreita é a casa de minha alma para que venhas até ela: que seja por ti dilatada. Está em
ruínas; restaura-a. Há nela nódoas que ofendem o teu olhar: confesso-o, pois eu o sei; porém,
quem haverá de purificá-la? A quem clamarei senão a ti? Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos,
e perdoa a teu servo os alheios! Creio, e por isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso não confessei
diante de ti meus delitos contra mim, ó meu Deus? E não me perdoaste a impiedade de meu
coração? Não quero contender em juízos contigo, que és a verdade, e não quero enganar-me a
mim mesmo, para que não se engane a si mesma minha iniqüidade. Não quero contender em
juízos contigo, porque, se dás atenção às iniqüidades, Senhor, quem, Senhor, subsistirá?

CAPÍTULO VI

Os primeiros anos

Permita, porém, que eu fale em presença de tua misericórdia, a mim, terra e cinza; deixa
que eu fale, porque é à tua misericórdia que falo, e não ao homem, que de mim escarnece. Talvez
também tu te rias de mim, mas, voltado para mim, terás compaixão.
E que pretendo dizer-te, Senhor, senão que ignoro de onde vim para aqui, para esta não
sei se posso chamar vida mortal ou morte vital? Não o sei. Mas receberam-me os consolos de
tuas misericórdias, conforme o que ouvi de meus pais carnais, de quem e em quem me formaste
no tempo, pois eu de mim nada recordo. Receberam-me os consolos do leite humano, do qual
nem minha mãe, nem minhas amas enchiam os seios; mas eras tu que, por meio delas, me davas

aquele alimento da infância, de acordo com o seu desígnio, e segundo os tesouros dispostos por ti
até no mais íntimo das coisas.
Também por tua causa é que eu não queria mais do que me davas; por tua causa é que
minhas amas queriam dar-me o que tu lhes davas, pois elas, movidas de sadio afeto, queriam dar-
me aquilo que abundavam graças a ti, já que era um bem para elas ou delas receber aquele bem,
embora realmente não fosse delas, meros instrumentos, porque de ti procedem, com certeza,
todos os bens, ó Deus, e de ti, Deus meu, depende toda minha salvação.
Tudo isto vim a saber mais tarde, quando me falaste por meio dos mesmos bens que me
concedias interior e exteriormente. Porque então as únicas coisas que fazia era sugar o leite,
aquietar-me com os afagos e chorar as dores de minha carne.
Depois também comecei…

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