Coração das trevas

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Coração das trevas
Joseph Conrad
Edição Bilíngue

Coração das trevas
Joseph Conrad
Tradução:
Ricardo Giassetti

I
A
Nellie, uma escuna de cruzeiro, ondulou impávida
presa à âncora sem o menor tremor nas velas. A
maré já estava cheia, o vento erat quase nada e,
apontada rio abaixo, a única coisa que lhe restava era esperar
a vazante.
O estuário do Tâmisa se estendia à frente como um
canal interminável. Ao longe, céu e mar se fundiam em
uma só cor. Nessa faixa luminosa as velas bronzeadas das
embarcações iam altas com a maré e pareciam inertes em
grupos de lonas avermelhadas e pontudas, com seus mastros
envernizados refletindo a luz. Uma neblina cobria as margens
baixas que desciam para a imensa planície aquática do mar
aberto. Acima de Gravesend o ar era sombrio; ao longe,
parecia se condensar estático, em uma tristeza melancólica,
sobre a maior cidade do mundo.
O Diretor da Companhia era nosso capitão e anfitrião.
Nós quatro olhávamos para suas costas com simpatia enquan-
to ele se debruçava sobre a amurada e olhava o mar. Não
havia nada mais náutico que ele em todo o rio. Parecia-se
com um piloto de barra, o que para um marujo significa a
habilidade em pessoa. Era difícil entender que seu trabalho

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não era realizado na amplitude do estuário, mas atrás dele,
dentro da escuridão melancólica.
O que nos unia, como já sugeri, era o amor pelo mar. Além
de manter nossos corações em harmonia por longos períodos de
separação, tinha o efeito de nos fazer tolerar nossos anseios — e
até mesmo nossas convicções. O Advogado — o melhor entre os
antigos companheiros — tinha direito, pelo acúmulo de tantos
anos e virtudes, ao único estofado do convés e estava deitado
sobre o único tapete da embarcação. O Contador trouxe consigo
uma caixa de dominós e brincava de construir com as peças de
ossos. Marlow estava sentado de pernas cruzadas próximo à
popa, encostado no mastro da mezena. Tinha as faces encovadas,
pele amarelada, postura correta, aspecto solene e, do modo como
estava, com os braços largados e as palmas das mãos expostas,
fazia lembrar um ídolo. O Diretor, satisfeito com a firmeza da
âncora, veio até a popa e sentou-se entre nós. Trocamos algumas
palavras preguiçosamente. Em seguida, o silêncio recaiu a bordo
da escuna. Por alguma razão não jogamos dominó. Estávamos
meditativos e dispostos unicamente à serena contemplação. O
dia terminava em uma tranquilidade silenciosa e benigna de
luz imaculada. A própria névoa que cobria os brejos de Essex
se parecia com um tecido transparente e brilhante, suspenso
sobre as colinas e matas terra adentro, plissado até a beira da
água em dobras sobrepostas. A escuridão a oeste, que parecia

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arredia à aproximação do sol, tornava-se cada vez mais escura
sobre as montanhas.
Finalmente, em sua queda arqueada e imperceptível, o
sol se pôs. Seu brilho branco tornou-se um vermelho opaco
sem raios ou calor, como se fosse sumir de repente, atingido
mortalmente pela escuridão que pairava sobre os homens.
Logo uma mudança se abateu sobre as águas e a sereni-
dade se tornou menos reluzente e mais profunda. O velho rio,
em toda sua vastidão, permanecia calmo ao final do dia, depois
de séculos de bons serviços prestados à raça que povoava suas
margens, esparramado na tranquila dignidade de um curso que
levava aos mais distantes confins da terra. Olhamos para o res-
peitável fluxo sob a majestosa luz das lembranças imortais, e
não à luz vívida de um mero dia que chega e parte inexorável.
E de fato nada é mais fácil para um homem que, como diz o
ditado, “seguiu o mar” com respeito e amor, do que evocar o
grande espírito do passado sobre as praias baixas do Tâmisa.
As correntes marítimas vêm e vão em seu eterno serviço,
repletas das memórias dos homens e dos navios transportados
de volta ao lar ou em direção às batalhas navais. Ele serviu a
todos aqueles que orgulhavam a nação, de Sir Francis Drake
1

1 Famoso corsário inglês que viveu durante o governo da era elisa-
betana (1558-1603) e um dos mais celebrados heróis da história
naval britânica.

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a Sir John Franklin
2
, todos cavalheiros, condecorados ou
não — os grandes cavaleiros errantes do mar. Ele conduziu
todos os barcos cujos nomes são como joias que brilham na
noite do tempo, desde o Golden Hind, que retornou com seus
flancos bojudos recheados de tesouros, foi recepcionado pela
Rainha Soberana e assim conquistou sua inigualável glória;
até o Erebus e o Terror, destinados a outras conquistas, que
nunca retornaram. Conhece como poucos as embarcações e
os homens. Nele, navegaram de Deptford, de Greenwich e
Erith aventureiros e colonizadores; navios reais e de carga;
capitães, almirantes e os obscuros “intermediários” do co-
mércio do Oriente; os “generais” comissionados das fragatas
das Índias Orientais. Caçadores de ouro ou de fama, todos
passaram por essa correnteza, brandindo espadas ou tochas,
mensageiros dos senhores das terras, portadores da centelha
da chama sagrada. Tantas grandezas navegaram pela vazante
daquele rio rumo às terras misteriosas e desconhecidas! Os
2 Famoso explorador da Marinha britânica do século 19, comandou
a expedição com os navios HMS Terror e HMS Erebus, encarre-
gada de descobrir a Passagem do Noroeste (um meio para ir do
ao Atlântico ao Pacífico sem dar a volta na América do Sul, o qual
acabaria resolvido com a construção do canal do Panamá). Essa
missão comandada por Franklin terminou em tragédia, inclusive
com casos de canibalismo entre os tripulantes, após os navios
encalharem na região do Ártico canadense.

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sonhos dos homens, a semente da igualdade, os germes dos
impérios.
O sol se pôs, o crepúsculo cobriu as águas, e luzes co-
meçaram a aparecer ao longo das margens. O farol Chapman,
uma coisa de três pernas construída sobre uma piscina de
lodo, brilhou forte. As lanternas das embarcações se mo-
viam ao longe — um fluxo de luzes a subir e descer pelo
canal. E mais longe ainda, na direção oeste, as partes altas da
monstruosa cidade ainda se delineavam ameaçadoramente
contra o céu, uma sombra sinistra que cobria o dia e criava
um brilho triste sob as estrelas.
— Este — disse Marlow inesperadamente — já foi um
dos lugares mais sombrios do planeta.
Ele era o único de nós que ainda “seguia o mar”. O
pior que poderia ser dito sobre ele é que não representava
a classe. Ele era um marujo, mas também um errante, ao
passo que a maioria dos marujos leva, por assim dizer, uma
vida sedentária. Suas mentes são do tipo doméstico. Seu lar,
o navio, sempre os acompanha; assim como seu país: o mar.
Os barcos são muito parecidos entre si e o mar é sempre o
mesmo. Na constância que os rodeia, os litorais e os rostos
estrangeiros, a dinâmica imensidão da vida, são coisas dis-
tantes, encobertas não por uma sensação de mistério, mas
por uma ignorância levemente desdenhosa. Não há nada

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misterioso para um marujo a não ser o próprio mar, o senhor
de sua existência, tão insondável quanto o futuro. De resto,
depois de um dia de trabalho, um simples passeio casual ou
uma farra na praia basta para revelar o segredo de todo um
continente que, geralmente, após descoberto não valeu a pena
da busca. Os desejos de um marujo têm uma simplicidade
evidente, a qual cabe tranquilamente e em todo seu sentido
dentro de uma casca de noz. Mas Marlow não era um ma-
rujo típico (caso aceitemos sua tendência à tagarelice). Para
ele, o sentido de um episódio não estava dentro de si como
a noz está dentro da casa, mas fora, envolvendo a história
que o originou como a luz dos misteriosos halos lunares, os
quais revelam a neblina e que só podem ser vistos em certas
noites espectrais.
Sua observação não fora nada surpreendente. Aliás,
como invariavelmente ocorria quando algo era dito por Mar-
low. A frase foi aceita em silêncio. Ninguém sequer se deu ao
trabalho de resmungar. Logo, ele prosseguiu, pausadamente:
— Estava pensando nos tempos antigos, da primeira
vez em que os romanos vieram, mil e novecentos anos
atrás… ou seja, ontem… depois disso, a luz passou a brilhar
neste rio… Vocês os chamam de cavalheiros? Sim, mas eles
são mais como fogo de palha, um relâmpago. Vivemos
no brilho dessa centelha, porém, espero que ela dure até

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este velho planeta parar de girar! Mas as trevas estavam
aqui ainda ontem. Imagine o coração de um comandante
de uma boa… como é mesmo o nome? De uma boa trirre-
me,
3
no Mediterrâneo, após receber ordens repentinas de
seguir para o norte. Cruzar apressado as terras gaulesas,
ser colocado no comando de um desses barcos em que os
legionários, que deviam ser talentosíssimos com suas mãos,
costumavam construir às centenas em um ou dois meses…
se é que podemos acreditar nos livros. Imaginem ele aqui,
neste fim de mundo. O mar cor de chumbo, o céu cor de
fumaça, um barco que parecia uma sanfona… subia este rio
com suprimentos, encomendas ou sei lá o que mais. Bancos
de areia, brejos, florestas, selvagens… quase nada digerível
para um homem civilizado além da água do Tâmisa para
beber. Nada de vinho…

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