CRISÁLIDAS – Machado de Assis

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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

CRISÁLIDAS
Machado de Assis

O POETA E O LIVRO

Conversação preliminar

I
Há dez anos!… sim… dez anos!…
Como resvala o tempo sobre a face da terra?…
………………………………………………………………….
Éramos sempre cinco, — alguma vez sete:
O mavioso rouxinol das Primaveras.
O melífluo cantor das Esperanças.
O inspirado autor das Tentativas.
O obscuro escritor destas verdades.
O quinto era um menino… uma verdadeira criança: não tinha nome, e posto que hoje todos lho conheçam,
não me convém a mim dizê-lo neste lugar, e tão cedo.

II

Pago o quotidiano tributo à existência material; satisfeitos os deveres de cada profissão, a palestra literária
nos reunia na faceira e tranqüila salinha do meu escritório…
Ali, — horas inteiras, — alheios às lutas do mundo, conchegados nos lugares e nas afeições, levitas do
mesmo culto, filhos dos mesmos pais – a pobreza e o trabalho, — em derredor do altar do nosso templo – a mesa do
estudo… falávamos de Deus, de amor, de sonhos; conversávamos música, pintura, poesia !…
Ali depúnhamos o fruto das lucubrações
*
da véspera, e na singela festa das nossas crenças, novas
inspirações bebíamos para os trabalhos do seguinte dia. Era um contínuo deslizar de ameníssimos momentos; era um
suave fugir das murmurações dos profanos; era enfim um dulcíssimo viver nas regiões da fantasia!… E foi esse o
berço das Primaveras, das Tentativas, das Crisálidas e das Efêmeras, e foi dali que irradiaram os nomes de
Casimiro de Abreu, de Macedinho, de Gonçalves Braga, e com esplêndido fulgor o de Machado de Assis!
A morte e o tempo derribaram o altar, e dispersaram os levitas. Do templo só resta o chão em que se ergueu;
e dos amigos só ficaram dois… dois para guardar, como Vestais severas, o fogo sagrado das tradições daqueles dias,
e para resumir no profundo afeto que os liga, o laço que tão fortemente estreitava os cinco.
E no instante em que este livro chegar às mãos do primeiro leitor, as campas deles, — diz-mo o coração, —
se entreabrirão para receber o saudoso suspiro dos irmãos, e um raio simpático da auréola do poeta!

III

*
locubrações, no original

2

Éramos, pois, cinco. Líamos e recitávamos. Denunciávamos as novidades: zurzíamos as profanações:
confundíamos nossas lições: — segredávamos nossos amores!
O quinto, — o menino, — depunha, como todos nós, sua respectiva oferenda. Balbuciando apenas a
literatura, — ainda novo para os seus mistérios, ainda fraco para o seu peso, nem por isso lhe faltava ousadia; antes
sobrava-lhe sofreguidão de saber, ambição de louros. Era vivo, era trêfego
*
, era trabalhador.
Aprazia-me de ler-lhe no olhar móvel e ardente a febre da imaginação; na constância das produções a avidez
do saber, e combinando no meu espírito estas observações com a naturalidade, o colorido e a luz de conhecimentos
literários que ele, — sem querer sem dúvida, — derramava em todos os ensaios poéticos que nos lia, dediquei-me a
estudá-lo de perto, e convenci-me, em pouco tempo, de que largos destinos lhe prometia a musa da poesia… E por
isso quando, lida alguma composição do nosso jovem companheiro, diziam os outros: bons versos! mas
simplesmente – bons versos, — eu nunca deixava de acrescentar, cheio do que afirmava: — belo prenúncio de um
grande poeta!

IV

Correram os anos… e como se a seiva dos ramos perdidos se houvesse concentrado no renovo que ficara, o
renovo cresceu, cresceu e vigorou! A profecia se foi todos os dias realizando de um modo brilhante.
Hoje a criança é homem; — o aprendiz jornalista e poeta.
Não me enganara… Adivinhei-o! E se alguém descobrir em mim vaidade quando me atribuo positivamente
o privilégio e a autoridade desta profecia, declaro desde já que a não declino, que a quero para mim, que a não cedo a
ninguém, porque… porque dela me prezo, porque dela me orgulho, porque o profetizado é Machado de Assis, — o
bardo de Corina, — o poeta das Crisálidas!

V

Até aqui o amigo: agora, leitor! o crítico.
Eu disse: — o poeta das Crisálidas.
Poeta é o autor: Crisálidas é o livro.
Crisálidas e poeta… dois lindos nomes… dois nomes sonoros… mas um deles falso!
Como serpe entre rosas, — no meio de tanta consonância deslizou-se uma contradição.
Crisálida é ninfa, é princípio de transformação, aurora de existência, semente de formosura… e os versos de
Machado de Assis são gemas cintilantes, vida espalmada, flores e sorrisos. Na mortalha informe e incolor do casulo a
graça está em problema, o movimento em risco: os versos de Machado de Assis só guardaram de ninfa a beleza e o
dom da aeredade!
**
São fulgidas borboletas que adejam sobre todas as flores da alma, revelando a quem as contempla
a perfeição da criatura e o gênio do criador. Não são, pois, crisálidas; se o fossem não seria o autor poeta, e Machado
de Assis, leitor, é poeta!
Fala-vos o coração de quem vo-lo diz? Não: protesta unicamente a consciência, e juro-o por minha fé de
homem de letras!

VI

A que escola pertence o autor deste livro?
À mística de Lamartine, à cética de Byron, à filosófica de Hugo, à sensualista de Ovídio, à patriótica de
Mickiewicz, à americana de Gonçalves Dias? A nenhuma.
Qual o sistema métrico que adotou? Nenhum.
Qual a musa que lhe preside as criações?… A mitológica de Homero, a mista de Camões, a católica do
Dante, a libertina de Parny? Nenhuma.
A escola de Machado de Assis é o sentimento; — seu sistema a inspiração: sua musa a liberdade. Tríplice
liberdade: liberdade na concepção; liberdade na forma; liberdade na roupagem. Tríplice vantagem: — originalidade,
naturalidade, variedade!
Sua alma é um cadinho onde se apuram eflúvios derramados pela natureza. Produz versos como a harpa
eólia produzia sons: — canta e suspira como a garganta do vale em noites de verão; pinta e descreve, como a face
espelhada da lagoa o Céu dos nossos sertões. E não lhe pergunteis porque: não saberia responder-vos. Se

*
Na errata da edição original consta travesso
**
Neologismo do autor do prefácio, significando a qualidade de ser aéreo.

3
insistísseis… parodiar-vos-ia a epígrafe da sua – Sinhá! —, o versículo do Cântico dos Cânticos, e no tom da maior
ingenuidade, dir-vos-ia: — a minha poesia… é como o óleo derramado!
E com razão… por que Machado de Assis é a lira, a natureza o plectro. E da ânfora de sua alma ele mesmo
ignora quando transbordam as gotas perfumadas!

VII

Eis aqui, pois, como Machado de Assis é poeta.
Um Deus benigno, — o mesmo que lhe deu por pátria este solo sem igual, — deu-lhe também o condão de
refletir a pomposa natureza que o rodeia. Fez mais… mediu por ela esse condão.
Se tivera nascido à sombra do pólo, entre os gelos do norte, seus cânticos pálidos e frios traduziriam em
silvos os êxtases do poeta; — mas filho deste novo Éden, cercado de infinitas maravilhas, as notas que ele desprende
são afinadas pelas grandiosas harmonias que proclamam.
É assim duas vezes instrumento… e nesta doce correspondência entre a criatura e o criador, a Musa ales, o
sagrado mensageiro que une a terra e o Céu é… a inspiração!.. É ela que ferve, e derrama da ânfora o óleo
perfumado. É ela que marca o compasso a ritmo, e a escola ao trovador. É ela que lhe diz: canta, chora, ama, sorri…
É ela enfim que lhe segreda o tema da canção, e caprichosa, ora chama-se luz, mel, aroma, graça, virtude, formosura,
ora se chama Stella, Visão, Erro, Sinhá, Corina!

VIII

Livres, sentidos, inspirados, os versos do autor das Crisálidas são e devem ser eloqüentes, harmoniosos e
exatos. São – porque ninguém se negará a dizê-lo lendo-os. Devem ser – porque o sentimento e a inspiração
constituem a verdadeira fonte de toda a eloqüência e de…

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