Memórias Póstumas de Brás Cubas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.
Ao verme
que
primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
estas
Memórias Póstumas
Prólogo da terceira edição
A primeira edição destas Memórias Póstumas de Brás Cubas foi feita
aos pedaços na Revista Brasileira, pelos anos de 1880. Postas mais
tarde em livro, corrigi o texto em vários lugares. Agora que tive de o
rever para a terceira edição, emendei ainda alguma coisa e suprimi
duas ou três dúzias de linhas. Assim composta, sai novamente à luz
esta obra que alguma benevolência parece ter encontrado no público.
Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do livro, perguntava:
“As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?” Macedo
Soares, em carta que me escreveu por esse tempo, recordava
amigamente as Viagens na minha terra. Ao primeiro respondia já o
defunto Brás Cubas (como o leitor viu e verá no prólogo dele que vai
adiante) que sim e que não, que era romance para uns e não o era
para outros. Quanto ao segundo, assim se explicou o finado: “Trata-
se de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma
livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti
algumas rabugens de pessimismo.” Toda essa gente viajou: Xavier de
Maistre à roda do quarto, Garret na terra dele, Sterne na terra dos
outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida.
O que faz do meu Brás Cubas um au tor particular é o que ele chama
“rabugens de pessimismo”. Há na alma deste livro, por mais risonho
que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir
de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas
leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um
defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e
mais certo.
Machado de Assis.
AO LEITOR
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem
leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem
provavelmente consternará é se es te outro livro não tiver os cem
leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito,
dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na
qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um
Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da
galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá
sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará
nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e
do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro
remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o
que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e
truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário
que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no
outro mundo. Seria curioso, ma s nimiamente extenso, e aliás
desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo:
se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas.
CAPÍTULO PRIMEIRO / ÓBITO DO AUTOR
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou
pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento,
duas considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que
o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também
contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença
radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês
de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns
sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca
de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem
anúncios. Acresce que chovia — peneirava uma chuvinha miúda,
triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que
proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus
senhores, vós podeis dizer comigo que a na tureza parece estar
chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que
têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu,
aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo,
tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas
entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim
que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as
ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego
como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-
me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha
irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, — um lírio do vale, — e…
Tenham paciência! daqui a pouco lh es direi quem era a terceira
senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não
parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais.
Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão,
convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática… Um
solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que
reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o
que menos convinha a essa anôn ima era aparentá-lo. De pé, à
cabeceira da cama, com os olhos es túpidos, a boca entreaberta, a
triste senhora mal podia crer na minha extinção.
— “Morto! morto!” dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu
desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das
ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou
por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil…
Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir
aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente,
metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos
homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e
o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá
fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte
foi muito menos triste do que po dia parecer. De certo ponto em
diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com
uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia
à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e
lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a
pneumonia, do que uma idéia gran diosa e útil, a causa da minha
morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou
expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
CAPÍTULO II / O EMPLASTO
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,
pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma
vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais
arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me
estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os
braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou
devoro-te.
Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento
sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa
melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi,
chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente
cristão. Todavia, não neguei aos…