PAULINA CHIZIANE
Niketche
Uma história de poligamia
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MINISTÉRIO I>A CULTURA
I.IVRO E DAS BIBLIOTECAS
Edição apoiada pelo Instituiu Português do Livro edas HiMiolecas
Aeditoraopumixirmanteriiptirlitgitêsdc.Moçambique
Capa
Dupla Design sobre Banhada Primeira Lua. de Malangatana
(boidado,1977). Coleção d< > artista.
Rei isão
Isabel Jorge Cury
Ana Maria Barbosa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cif)
(Cámara Brasileira do Livro, si*. Brasil)
Chi/iane. Paulina
Niketche : uma história dc poligamia / Paulina Chi/iane.
— Sao Paulo : Companhia das Letras. 2004.
BBH 85-359-0471-9
I. Ficçio moçambicana (Portugués) I. Titulo.
04-0970 CUO – «69.3
índice para catálogo sistemático:
I. Picçáo moçambicana em português 869.3
[2004]
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Com a Leontina dos Muchangos,
naregopelo universo ela mulher,
essa alma desconhecida
onde descobriiHideres adormecidos
e
Com a Alcinda de Abreu, passeio até oSolsepôr
eo dia ciarem:
nas paisagens mais extraordinárias
do mundo de uma mulher
Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz
(Provérbio zambeziano)
1.
Um estrondo ouve-se do lado de lá. Uma bomba.
Mina antipessoal. Deve ser a guerra a regressar outra vez.
Penso em esconder-me. Em fugi r. O estrondo espanta
os pássaros que voam para a segurança das alturas. Não.
Não deve ser o projéctil de uma bala. Talvez sejam dois
carros em colisão pela estrada fora. Lanço os olhos curio
sos para a estrada. Não vejo nada. Apenas silêncio. Sinto
um tremor ligeiro dentro do peito e fico imóvel por uns
instantes. Um bando de vizinhas caminham na minha
direcção.
— Rami!
— O que foi?
— O carro.
Os seus braços movem-se como ondas mansas, pron
tas para abrandar o tumulto. Há emoção em cada gesto.
Há um tom de piedade, leve e dissimulado, em cada olhar,
que faz crescer em mim o sobressalto.
— Carro?
— Sim. O vidro.
—Vidro?
9
— Sim. Vidro do carro.
—Ah! Quem foi?
— O Betinho.
—Ah?
Do alto do céu desliza um punhal invisível contra o
meu peito. Ganho a mudez das pedras, estou aterrada.
Consigo apenas suspirar: ah, Betinho, meu caçulinha!
Aquele carro é de homem rico. O que será de mim?
Entro num delírio silencioso, profundo. Rajadas de
ansiedade varrem-me os nervos como lâminas de vento.
Este acidente enche-me de dor e de saudade. Meu Tony,
onde andas tu? Por que me deixas só a resolver os pro
blemas de cada dia como mulher e como homem,
({liando tu andas por aí?
Há momentos na vida em que uma mulher se sente
mais solta e desprotegida como um grão de poeira. Onde
andas, meu Tony, que não te vejo nunca? Onde andas,
meu marido, para me protegeres, onde? Sou uma mui her
de bem, uma mulher casada. Uma revolta interior enve
nena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na
boca. Náuseas. Revolta. Impotência e desespero.
O Betinho vem correndo como uma bala, esconde-
se no quarto e aguarda ocastigo. Persigo-o.Já tenhoofim-
de-semana estragado, o meu domingo foi invadido pela
desgraça. Preciso de gritar para vomitar este fel. Predso
de ralhar para afastar esta d< >r. Preciso de castigar alguém
para sentir que vivo.
— Betinho!
Não consigo gritar. No rosto do Betinho, as lágrimas
brilham como luar. A tristeza do Betinho é a inocência a
transbordar. O choro do Betinho é tão doce como um
passarinhoa piar.Oseu tremorabanaocorpo todo como
um arbusto baloiçando as flores na leveza do vento. Sinto >
um cheiro de urina.
— Betinho, um homem não se mija de medo.
10
— Foi a manga, mãe.
— Manga?
— Sim, aquela madura,…