O Empréstimo – Machado de Assis

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O Empréstimo, de Machado de Assis

Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.

Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)

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O empréstimo

Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo
ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que
a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito
repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um
sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e
ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de
Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me
engano.
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si
mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não;
mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma
vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de
ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos,
vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se
passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de
a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?

Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário. Os
escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta
de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis,
arrumaram os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram
o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.
Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos
elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter
das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma
de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os
pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo
míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto.
Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta
anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito
caladinho os seus duzentos contos de réis.
– Quem é? perguntou ele de repente olhando para a porta da rua.
Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde
reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu,
cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o
acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao
tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e
esperou.
– Não se lembra de mim?
– Não me lembro…
– Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca… Não se lembra? Em casa do
Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde… Veja se se lembra
do Custódio.
– Ah!
Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta
anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas
com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do rosto, que
era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de um certo ar duplo que
distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço e sem
vintém, parecia levar após si um exército. A causa não era outra mais do que o contraste
entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da
riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo,
da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até
certa ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha
dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava
viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n’en vois pas
la nécessité, redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio;
davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele
principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns
negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para
nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e
metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as

dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se
para outra.
Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de
réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a
cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica
de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica, os
relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de
armarinho, etc., todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de
Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe
pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para
trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o
afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos
que os cinco mil-réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas,
tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem
dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as
esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome
de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases
com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.
– Venho pedir-lhe uma escritura…
Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou para cima dos óculos e
esperou.
– Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um
favor indispensável, e conto que o meu amigo…
– Se estiver nas minhas mãos…
– O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a
incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas
para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma
indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta
quantia, a seis meses, – ou a três, com juro módico…
– Cinco contos?
– Sim, senhor.
– Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda
que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco
contos de um modesto tabelião de notas?
– Ora, se o senhor quisesse…
– Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus
recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.
A alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de
descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última
esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como
todos os corações que se entregam ao regime do eventual, o do Custódio era supersticioso.
O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria
de produzir no primeiro…

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