Pai Contra Mãe, de Machado de Assis
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
NUPILL – Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Universidade Federal de Santa Catarina
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as
informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto.
Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para
saiba como isso é possível.
PAI CONTRA MÃE
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um
deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-
flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a
boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da
cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque
geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí
ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal
máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma
vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não
cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a
haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com
chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim,
onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos
gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de
casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,
entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas
comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que
seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse
aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico,
se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a
quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente”, — ou “receberá uma boa
gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de
preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com
todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser
instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza
implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou
estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, — em família, Candinho,– é a pessoa a quem se liga a história de uma
fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um
defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;
é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo
que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o
bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas
estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao
Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de
obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas,
porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para
obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições.
Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não
fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para
cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou
muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e
cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados
apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes,
olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O
que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos.
Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia
a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe;
algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a
outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o
possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi–
para lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a página inicial daquele livro, que
tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e
foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que
por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo,
nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em
demasia a patuscadas.
–Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. –Não, defunto
não; mas é que…
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se
foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora
viesse agravar a necessidade.
–Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
–Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a
advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era
amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram
objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e
o riso digeria-se sem esforço.
Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego
certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo
específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a
criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada
ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
–Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia
grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que,
além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força
de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era
escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
–Vocês verão a triste vida, suspirava ela. –Mas as outras crianças não nascem também?
perguntou Clara. –Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que
pouco… –Certa como? –Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é
que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas
muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
–A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer
jantar…