Papeis Avulsos

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Papéis Avulsos

Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente por Lombaerts & Cia, Rio de Janeiro, 1882.

ÍNDICE

ADVERTÊNCIA

O ALIENISTA

TEORIA DO MEDALHÃO

A
CHINELA TURCA

NA
ARCA

D. BENEDITA

O
SEGREDO DO BONZO

O ANEL DE POLÍCRATES

O
EMPRÉSTIMO

A SERENÍSSIMA REPÚBLICA

O ESPELHO

UMA VISITA DE ALCIBÍADES

VERBA TESTAMENTÁRIA

NOTAS DO AUTOR

ADVERTÊNCIA

Este título de Papéis Avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer
que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A
verdade é essa, sem ser bem essa. Avulso s são eles, mas não vieram para aqui

como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de
uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa.

Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas
mãos do leitor. Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos
e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das
outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com São
João e Diderot. O evangelista, descrev endo a famosa besta apocalíptica,
acrescentava (XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria”. Menos a
sabedoria, cubro-me com aquela palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que
ele, não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo
que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz
um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a
gente dar por isso.

Deste modo, venha donde vier o reproche*, espero que daí mesmo virá a
absolvição.

Machado de Assis
Outubro de 1882.

O ALIENISTA

ÍNDICE

CAPÍTULO
PRIMEIRO

CAPÍTULO II

CAPÍTULO III

CAPÍTULO IV

CAPÍTULO V

CAPÍTULO VI

CAPÍTULO VII

CAPÍTULO VIII

CAPÍTULO IX

CAPÍTULO X

CAPÍTULO XI

CAPÍTULO XII

CAPÍTULO XIII

CAPÍTULO PRIMEIRO
DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo
médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos
do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e
quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em
Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da
monarquia.

— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu
universo.

Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da
ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com
cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas,
senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz-de-fora, e não bonita nem
simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos
franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-
lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem,
digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista;
estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas
prendas, — únicas dignas da preocupaçã o de um sábio, D. Evarista era mal
composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não
corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva,
miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos
nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico
esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um
estudo profundo da matéria, releu todo s os escritores árabes e outros, que
trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e
acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama,
nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às
admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, —
devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.

Mas a ciência tem o inefável dom de cu rar todas as mágoas; o nosso médico
mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos
recantos desta lhe chamou especialment e a atenção, — o recanto psíquico, o
exame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só
autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão
Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira,
podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”, — expressão usada por ele mesmo, mas
em um arroubo de intimidade doméstic a; exteriormente era modesto, segundo
convém aos sabedores.

— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.

— Do verdadeiro médico, emendou Crispi m Soares, boticário da vila, e um dos
seus amigos e comensais.

A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas,
tinha o de não fazer caso dos dementes . Assim é que cada louco furioso era
trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que

a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela
rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu
licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os
loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a
Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta
excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é
que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de
meter os loucos na mesma casa, vivend o em comum, pareceu em si mesma um
sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.

— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido
dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira
o juízo.

D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe “que estava com
desejos”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele
lhe parecesse adequado a certo fim. Ma s aquele grande homem, com a rara
sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redargüiu-lhe
sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a
proposta, e defendeu a com tanta eloqüênc ia, que a maioria resolveu autorizá-lo
ao que pedira, votando ao mesmo temp o um imposto destinado a subsidiar o
tratamento, alojamento e mantimento do s doidos pobres. A matéria do imposto
não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos,
assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem
quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à
Câmara, repetindo-se tantas vezes es ta quantia quantas fossem as horas
decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão
perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos
vereadores, que não acreditava na empres a do médico, pediu que se relevasse o
escrivão de um trabalho inútil.

— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja
nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da
licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de
Itaguaí naquele tempo, tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e
numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no
Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes
tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a
fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela
ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás
pia, que…

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