Reinações de Narizinho – Monteiro Lobato

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Monteiro Lobato

REINAÇÕES DE NARIZINHO

Edição Integral e Ilustrada

Digitalização e Revisão
Arlindo_San

Narizinho Arrebitado

I – Narizinho

Numa casinha branca, lá no sítio do Pica-pau Amarelo, mora uma velha de
mais de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na
varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu
caminho pensando:
— Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto…
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em
companhia da mais encantadora das netas — Lúcia, a menina do narizinho
arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.
Narizinho tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já
sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.
Na casa ainda existem duas pessoas — tia Nastácia, negra de estimação que
carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de
corpo. Emília foi feita por tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão
lá em cima que é ver uma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela; não
almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa
redinha entre dois pés de cadeira.
Além da boneca, o outro encanto da menina é o ribeirão que passa pelos
fundos do pomar. Suas águas, muito apressadinhas e mexeriqueiras, correm por
entre pedras negras de limo, que Lúcia chama as “tias Nastácias do rio”.

Todas as tardes Lúcia toma a boneca e vai passear à beira d’água, onde se
senta na raiz dum velho ingazeiro para dar farelo de pão aos lambaris.
Não há peixe do rio que a não conheça; assim que ela aparece, todos acodem
numa grande faminteza. Os mais miúdos chegam pertinho; os graúdos parece que
desconfiam da boneca, pois ficam ressabiados, a espiar de longe. E nesse
divertimento leva a menina horas, até que tia Nastácia apareça no portão do pomar e
grite na sua voz sossegada:
— Narizinho, vovó está chamando!…

II – Uma vez…

Uma vez, depois de dar comida aos peixinhos, Lúcia sentiu os olhos pesados
de sono. Deitou-se na grama com a boneca no braço e ficou seguindo as nuvens que
passeavam pelo céu, formando ora castelos, ora camelos. E já ia dormindo,
embalada pelo mexerico das águas, quando sentiu cócegas no rosto. Arregalou os
olhos: um peixinho vestido de gente estava de pé na ponta do seu nariz.
Vestido de gente, sim! Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça e
guarda-chuva na mão — a maior das galantezas! O peixinho olhava para o nariz de
Narizinho com rugas na testa, como quem não está entendendo nada do que vê.
A menina reteve o fôlego de medo de o assustar, assim ficando até que sentiu
cócegas na testa. Espiou com o rabo dos olhos. Era um besouro que pousara ali. Mas
um besouro também vestido de gente, trajando sobrecasaca preta, óculos e bengala.
Lúcia imobilizou-se ainda mais, tão interessada estava achando aquilo.
Ao ver o peixinho, o besouro tirou o chapéu, respeitosamente.
— Muito boas tardes, senhor príncipe! — disse ele.
— Viva, mestre Cascudo! — foi a resposta.
— Que novidade traz Vossa Alteza por aqui, príncipe?
— É que lasquei duas escamas do filé e o doutor Caramujo me receitou ares
do campo. Vim tomar o remédio neste prado que é muito meu conhecido, mas
encontrei cá este morro que me parece estranho — e o príncipe bateu com a biqueira
do guarda-chuva na ponta do nariz de Narizinho e disse:
— Creio que é de mármore — observou.
Os besouros são muito entendidos em questões de terra, pois vivem a cavar
buracos. Mesmo assim aquele besourinho de sobrecasaca não foi capaz de adivinhar
que qualidade de “terra” era aquela. Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico,
examinou o nariz de Narizinho e disse:
— Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão.
— Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura — volveu o
príncipe.
O besouro provou a tal terra com a ponta da língua.
— Muito salgada para ser rapadura. Parece antes…
Mas não concluiu, porque o príncipe o havia largado para ir examinar as
sobrancelhas.

— Serão barbatanas, mestre Cascudo? Venha ver. Por que não leva algumas
para os seus meninos brincarem de chicote?
O besouro gostou da idéia e veio colher as barbatanas. Cada fio que arrancava
era uma dorzinha aguda que a menina sentia — e bem vontade teve ela de o espantar
dali com uma careta! Mas tudo suportou, curiosa de ver em que daria aquilo.
Deixando o besouro às voltas com as barbatanas, o peixinho foi examinar as
ventas.
— Que belas tocas para uma família de besouros! — exclamou.
— Por que não se muda para aqui, mestre Cascudo? Sua esposa havia de
gostar desta repartição de cômodos.
O besouro, com o feixe de barbatanas debaixo do braço, lá foi examinar as
tocas. Mediu a altura com a bengala.
— Realmente, são ótimas — disse ele. — Só receio que more aqui dentro
alguma fera peluda.
E para certificar-se cutucou bem lá no fundo.
— Hu! Hu! Sai fora, bicho imundo!…
Não saiu fera nenhuma, mas como a bengala fizesse cócegas no nariz de
Lúcia, o que saiu foi um formidável espirro — Atchim!… e os dois bichinhos,
pegados de surpresa, reviraram de pernas para o ar, caindo um grande tombo no
chão.
— Eu não disse? — exclamou o besouro, levantando-se e escovando com a
manga a cartolinha suja de terra. — É, sim, ninho de fera, e de fera espirradeira!
Vou-me embora. Não quero negócios com essa gente. Até logo, príncipe! Faço
votos para que sare e seja muito feliz.
E lá se foi, zumbindo que nem um avião. O peixinho, porém, que era muito
valente, permaneceu firme, cada vez mais intrigado com a tal montanha que
espirrava. Por fim a menina teve dó dele e resolveu esclarecer todo o mistério.
Sentou-se de súbito e disse:
— Não sou montanha nenhuma, peixinho. Sou Lúcia, a menina que todos os
dias vem dar comida a vocês. Não me reconhece?
— Era impossível reconhecê-la, menina. Vista de dentro d’água parece muito
diferente…
— Posso parecer, mas garanto que sou a mesma. Esta senhora aqui é a minha
amiga Emília.
O peixinho saudou respeitosamente a boneca, e em seguida apresentou-se
como o príncipe Escamado, rei do reino das Águas Claras.
— Príncipe e rei ao mesmo tempo! — exclamou a menina batendo palmas. —
Que bom, que bom, que bom! Sempre tive vontade de conhecer um príncipe-rei.
Conversaram longo tempo, e por fim o príncipe convidou-a para uma visita
ao seu reino. Narizinho ficou no maior dos assanhamentos.
— Pois vamos e já — gritou — antes que tia Nastácia me chame.
E lá se foram os dois de braços dados, como velhos amigos. A boneca seguia
atrás sem dizer palavra.
— Parece que dona Emília está emburrada — observou o príncipe.

— Não é burro, não, príncipe. A pobre é muda de nascença. Ando à procura
de um bom doutor que a cure.
— Há um excelente na corte, o célebre doutor Caramujo. Emprega umas
pílulas que curam todas as doenças, menos a gosma dele. Tenho a certeza de que o
doutor Caramujo põe a senhora Emília a falar pelos cotovelos.
E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pílulas quando chegaram
a certa gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto. Que coisa estranha! A
paisagem estava outra.
— É aqui a entrada do meu reino — disse o príncipe. Narizinho espiou, com
medo de entrar.
— Muito escura, príncipe. Emília é uma grande medrosa.
A resposta do peixinho foi tirar do bolso um vaga-lume de cabo de arame,
que lhe servia de lanterna viva. A gruta clareou até longe e a “boneca” perdeu o
medo. Entraram.
Pelo caminho foram saudados com grandes marcas de respeito, por várias
corujas e numerosíssimos morcegos. Minutos depois chegavam ao portão do reino.
A menina abriu a boca, admirada.
— Quem construiu este maravilhoso portão de coral, príncipe?
É tão bonito que até parece um sonho.
— Foram os Pólipos, os pedreiros mais trabalhadores e incansáveis do mar.
Também meu palácio foi construído por eles, todo de coral rosa e branco.
Narizinho ainda estava de boca aberta quando o príncipe notou que o portão
não fora fechado naquele dia.
— É a segunda vez que isto acontece — observou ele com cara feia. —
Aposto que o guarda está dormindo.
Entrando, verificou que era assim. O guarda dormia um sono roncado. Esse
guarda não passava dum sapão muito feio, que tinha o posto de major no exército
marinho. Major Agarra-e-não-larga-mais.
Recebia como ordenado cem moscas por dia para que ali ficasse, de lança em
punho, capacete na cabeça e a espada à cinta, sapeando a entrada do palácio. O
Major, porém, tinha o vício de dormir fora de horas, e pela…

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