Relíquias de Casa Velha
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1906.
ÍNDICE
ADVERTÊNCIA
PAI CONTRA MÃE
MARIA CORA
MARCHA FÚNEBRE
UM CAPITÃO DE VOLUNTÁRIOS
SUJE-SE GORDO!
UMAS FÉRIAS
EVOLUÇÃO
PÍLADES E ORESTES
ANEDOTA DO CABRIOLET
ADVERTÊNCIA
Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro,
da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em
as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não
raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia
delas que mereçam sair cá fora.
Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e
impressos que aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o
livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia
de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão,
leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha.
Machado de Assis
A CAROLINA
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores, — restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados,
Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
PAI CONTRA MÃE
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo
ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a
máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos
escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para
respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber,
perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que
eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a
sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social
e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os
funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos
de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos e scravos fujões. Imaginai uma coleira
grossa, com a haste grossa também à di reita ou à esquerda, até ao alto da
cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos
castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava
um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocas ionalmente apanharem pancada, e nem
todos gostavam de apanhar pancada. Gr ande parte era apenas repreendida;
havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau;
além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro
também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em
que o escravo de contrabando, apenas co mprado no Valongo, deitava a correr,
sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas
ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora,
quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.
Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o
defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação.
Quando não vinha a quantia, vinha prom essa: “gratificar-se-á generosamente”,
— ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao
lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na
ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o
acoitasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por
ser instrumento da força com que se mant êm a lei e a propriedade, trazia esta
outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal
ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a
inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir
também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia
bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, — em família, Candinho, — é a pessoa a quem se liga a história
de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos
fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem
ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por
querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para
compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a
si mesmo. O comércio chamou-lhe a at enção, era carreira boa. Com algum
esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e
servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas
estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição
anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados
pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que
poucas, porque morava com um primo, en talhador de ofício. Depois de várias
tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já
tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender
depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras
para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando
casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia,
Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas
os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho.
Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a
fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava
saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos.
Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver
se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só
para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a mo ça viu Cândido Neves, sentiu que era
este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um
baile; tal foi — para lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a página
inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O
casamento fez-se onze meses depois, e fo i a mais bela festa das relações dos
noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la
do passo que ia dar. Não negavam a ge ntileza do noivo, nem o amor que lhe
tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a
patuscadas.
— Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
— Não, defunto não; mas é que…
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles
se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um
só, embora viesse agravar a necessidade.
— Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
— Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.
Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi
pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento
seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos
nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer,
mas davam que rir, e…