Teoria do Medalhão, de Machado de Assis
Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)
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Teoria do medalhão
Diálogo
– Estás com sono?
– Não, senhor.
– Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
– Onze.
– Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus
vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um
pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros…
– Papai…
– Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta;
vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas
apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na
lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti.
Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos
Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que
seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos
notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme
loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração
é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas
aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por
diante.
– Sim, senhor.
– Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também
é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não
indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia
da tua maioridade.
– Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?
– Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da
minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem
outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem,
meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância,
os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco
anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: “a
gravidade é um mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa
gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação
do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da
vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos…
– É verdade, por que quarenta e cinco anos?
– Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do
fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e
cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os
sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de
trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse
madrugar é privilégio do gênio.
– Entendo.
– Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias
que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente;
coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um
braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas
era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência,
abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante
esforço conviria ao exercício da vida.
– Mas quem lhe diz que eu…
– Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente
ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as
opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência
de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto
correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias
acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas
novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer
que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar
fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as
sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é
extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.
– Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.
– Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica,
ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O
whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da
circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas
façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as
forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
– Como assim, se também é um exercício corporal?
– Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho
excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três
quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas
ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares
desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo,
embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
– Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?
– Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira
da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer
outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande
conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às
escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia,
da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer
coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de
Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e
uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito
meses – suponhamos dois anos, – reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à
sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está
subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas
vermelhas, sem cores de clarim…
– Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando…
– Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo,
a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos,
clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos
históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo
para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é
um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns
costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela,
mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que
tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções
convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e
pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não
as relaciono…