Um Sopro de VidaUm Sopro de Vida
(Pulsações)
Clarice Lispector
Editora Nova Fronteira, 1978
3ª edição
Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap
Desde Perto do Coração Selvagem, cada novo livro de Clarice Lispector
(romances, conjuntos de contos, ou crônicas reunidas), a par de todas as
excepcionais qualidades literárias que hoje ninguém mais ousa contestar —
qualidades que as sucessivas reedições deles e considerável bibliografia crítica só
fazem cada vez mais esclarecer e acentuar —, jamais deixou de começar por
surpreender, assustar, desarmar o leitor: ler um texto de Clarice Lispector— lê-lo
e amá-lo — é, sem se saber por quê, como se alguém nos tivesse pego nus em
flagrante.
Não é possível, portanto — e agora, com este Um Sopro de Vida, mais do
que nunca —, tentarmos penetrar nos sentidos tramados por uma das escrituras
mais dramaticamente densas e tensas da literatura de ficção contemporânea, sem,
em seu pórtico, nos despojarmos de toda idéia, expectativa, posição, teóricas ou
não, e mesmo daquelas que os textos anteriores de Clarice possam ter alimentado.
Assim, valeria a pena tentar descrever em tão poucas linhas o que vem a
ser este Um Sopro de Vida? Valeria a pena tentar seduzir com um breve resumo de
seu enredo — de resto aqui inexistente — o possível freguês de uma livraria
qualquer que, por acaso, quase automaticamente, passeia olhos e mãos por
estantes mais confusas do que qualquer Biblioteca de Babel? Valeria a pena deixar
aqui consignadas algumas pistas de como ler este livro?
Não, ao menos por enquanto ainda não (críticos, professores, teóricos e
demais aficionados, de acordo com seus gostos e escolas pessoais, sobre ele muito
terão a nos “ensinar”). Por enquanto, talvez baste, talvez ainda seja melhor, ouvir
atenta e amorosamente o próprio texto, que nos diz isto:
“Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo. Este é um livro fresco —
recém-saído do nada”.
“Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor
trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional”.
E: “Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando
fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão livro de vida
então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para
enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou
caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me
livro de mim e posso então descansar”
É isso aí. Só que: nós, leitores, podemos, merecemos acaso descansar?
* * *
Do pó da terra formou Deus-Jeovah o homem e soprou-lhe nas narinas o fôlego
da vida. E o homem tornou-se um ser vivente.
Gênesis 2.7
A alegria absurda por excelência é a criação.
Nietzsche
O sonho é uma montanha que o pensamento há de escalar. Não há sonho sem
pensamento. Brincar é ensinar ideias
Andréa Azulay
Haverá um ano em que haverá um mês, em que haverá uma semana em que
haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá
um segundo e dentro do segundo haverá o não-tempo sagrado da morte
transfigurada.
Clarice Lispector
S u m á r i o :
APRESENTAÇÃO
UM SOPRO DE VIDA
O SONHO ACORDADO É QUE É A REALIDADE
COMO TORNAR TUDO UM SONHO ACORDADO?
LIVRO DE ÂNGELA
Apresentação
PARA CLARICE LISPECTOR, minha amiga, Um sopro de vida seria o seu livro
definitivo.
Iniciado em 1974 e concluído em 1977, às vésperas de sua morte, este
livro, de criação difícil, foi, no dizer de Clarice, “escrito em agonia”, pois nasceu
de um impulso doloroso que ela não podia deter. Simultaneamente à sua criação,
ela escreveu nesse período A Hora da estrela, sua última obra publicada.
Durante oito anos convivi com Clarice Lispector participando de seu
processo de criação. Eu anotava pensamentos, datilografava manuscritos e,
principalmente, partilhava dos momentos de inspiração de Clarice. Por isso, me
foi confiada, por ela e por seu filho Paulo, a ordenação dos manuscritos de Um
sopro de vida.
E assim foi feito.
Olga Borelli
Um Sopro de Vida
ISTO NÃO É UM LAMENTO, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila.
O beijo no rosto morto.
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a
minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os
mortos porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em
ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso
de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.
Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número
que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou
porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e
rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem
fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou
caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e
imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em
mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma.
Este livro é a sombra de mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado
quando não vos obedeço. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam.
Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos
se alegram. É que os infelizes se compensam.Nunca a vida foi tão atual como
hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria.
O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme
dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não
existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o
tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo
passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido
pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa —
eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo
também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos
num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas
que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e
dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em
diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo
desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há
algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota
de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha
do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de
cada dia.
Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os
significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que
me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra.
E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição.
Escrevo ou não escrevo?
Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas vezes a
questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está
longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido
em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles
que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como,
digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte
súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?
Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se
torna fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto
de encher as páginas com informações sobre os “fatos”? Devo imaginar uma
história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem
a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se
aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não
existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida — é por
isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão
intensamente.
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de
mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes
submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no
vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente
perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das
palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é
uma pedra lançada no poço fundo.
Meditação leve e terna sobre…





