O Estrangeiro – Albert Camus

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ALBERT CAMUS
O ESTRANGEIRO

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Autor: Albert Camus
Título: O Estrangeiro
Título Original: L’Étranger
Tradução: Antônio Quadros
Data Publicação Original: 1942
Digitalização: 2000

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PRIMEIRA PARTE

Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, nã o sei bem. Recebium
telegrama do asilo:
“Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames”.
Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros deArgel.
Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde.
Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã ànoite.
Pedi dois dias de folga ao meu chefe e, com um pretextodestes, ele
não me podia recusar. Mas não estava com um ar lámuito satisfeito.
Cheguei mesmo a dizer-lhe “A culpa não é minha”. Nãorespondeu.
Pensei então que não devia ter dito estas palavras.
A verdade: é que eu não tinha que me desculpar: Ele é quetinha de
me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã,
quando me vir de luto. Por agora é um pouco como se a mãe não
tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso
arrumado e tudo passará a revestir-se de um armais oficial.
Tomei o autocarro às duas horas. Estava calor. Como de costume,
almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena
de mim, e o Celeste disse-me “Mãe, há só uma”.
Quando saí, acompanharam -me à porta. Estava um pouco
atordoadoe tive que ir à casa do Manuel para lhe pedir emprestados
umfumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu o tio, há meia
dúziade meses.
Tive que correr para não perder o autocarro. Esta pressa, esta
correria, e talvez também os solavancos, o cheiro da gasolina, a
luminosidade da estrada e do céu, tudo istocontribuiu para que eu
adormecesse no caminho. Dormi quase todo o tempo. E quando
acordei, estava apertado de encontro aum soldado, que me sorriu e
me perguntou se eu vinha de longe.
Disse que sim, para não ter que voltar a falar.
O asilo distava dois quilômetros da aldeia. Fui a pé. Quisver
imediatamente a mãe. Mas a porteira disse -me que euprecisava,
antes disso, de falar com o diretor. Como estavacom pessoas,

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esperei ainda um pouco. Durante este tempo, o porteiro não parou
de falar. Depois, o diretor recebeu-me noseu gabinete. Um velhote,
que tem a Legião de honra. Fitou-mecom uns olhos muito claros.
Depois apertou-me a mão durante tanto tempo, que já não sabia
como havia de a tirar. Consultou um processo e disse -me: “A
senhora sua mãe entrou para aqui há três anos”. “O senhor era o
seu único amparo”.
Julguei que me estava a fazer alguma censura e comecei aexplicar-
lhe, mas ele interrompeu-me: “Não tem nada que se justificar, meu
filho”. Estive lendo o processo da sua mãe. Osenhor não lhe podia
suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu
ordenado é modesto. E, no fim das contas,aqui ela era feliz.
Disse: “Sim Sr. Diretor”.
Acrescentou:”Sabe o senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da
mesma idade”.
Partilhava com eles motivos de interesse que são de um
outrotempo. “O Senhor é novo, e ao pé de si, ela aborrecia-se
comcerteza”.
Era verdade. Quando estava lá em casa a mãe passava o tempo a
seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias do asilo,
chorava muitas vezes: Mas era por causa do hábito. Ao fim de
alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao
hábito. Foi um pouco por isto que, no último anoquase não a fui
visitar, E também porque a visita me tomava o domingo todo sem
contar o esforço para ir para o autocarrocomprar os bilhetes e fazer
duas horas de viagem.
O diretor disse-me ainda mais coisas. Mas já quase não oouvia. Em
seguida perguntou-me: “Julgo que agora, quer ir vera sua mãe?”.
Levantei-me sem dizer nada e acompanhei-o até à porta.
Nas escadas, explicou -me: “Leva mo-la para a nossa
morgueparticular. Para não impressionar os outros. Cada vez
quealgum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou
trêsdias, o que torna o serviço difícil”.
Atravessamos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em
grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se.

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E atrás de nós as conversas recomeçavam.
Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. À porta de
umapequena construção, o diretor deixou-me.
“Deixo-o agora, senhor Meursault”. Estou às ordens, noescritório.
Em princípio, o enterro estava marcado para as dezhoras da manhã.
Pensamos que o Senhor podia assim passar anoite a velar.
Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos
amigos o desejo de ter um enterro religioso.- Tomei àminha conta
este encargo. Mas queria pô-lo a par.
Agradeci-lhe. Embora sem ser atéia, enquanto viva a mãe nunca
pensara na religião: Entrei: Era uma sala muito clara, caiada, e
coberta por uma vidraça. Mobil iavam-na algumascadeiras e
cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam
um caixão coberto.
Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados,destacando-se
da madeira pintada de casca de noz. Perto do caixão estava uma
enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na cabeça.
Neste momento, o porteiro entrou por detrás de mim. Devia ter
corrido: Gaguejou.
“Fecharam-no, mas eu vou desparafusá-lo, para que o senhor a
possa ver”. Aproximava-se do caixão, quando eu o detive.
Disse-me: “Não quer?” Respondi: “Não”. Calou -se e eu
estavaembaraçado porque sentia que não devia ter dito isto. Ao
fimde uns momentos, ele olhou-me e perguntou: “Porquê?”, mas
semum ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse:
“Não sei”. Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou semolhar
para mim: “Compreendo”. O homem tinh a uns bonitos olhosazuis
claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu -me umacadeira e
sentou-se também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantou-
se e dirigiu-se para a porta. Nestemomento, o porteiro disse-me: “O
que ela tem, é um cancro”.
Não percebi o que ele dizia, até reparar que a enfermeiratrazia por
debaixo dos olhos uma ligadura que dava a volta à cabeça. No sítio
do nariz, não se via nenhuma saliência.
Apenas a brancura do penso, sobre a cara.

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Depois dela sair, o porteiro falou: “Vou deixá-lo sozinho”.
Não sei bem que gesto fiz, mas deixou-se ficar em pé, atrás demim.
Esta presença nas minhas costas incomodava -me. A salaestava
cheia de uma bonita luz de fim de tarde. Dois besouroszumbiam, de
encontro à vidraça. E eu sentia-me invadido pelosono. Disse ao
porteiro, sem me voltar para ele: “Está cá há muito tempo?” Ele
respondeu imediatamente: “Cinco anos”, como se estivesse desde
sempre à espera da minha pergunta.
Em seguida, pôs-se a falar sem parar. Muito se teriaespantado se
alguém lhe houvesse dito, no seu tempo, queacabaria como porteiro
de um asilo, em Marengo. Tinha sessenta e quatro anos e era
parisiense. Neste momento interrompi-o:
“Ah, o senhor não é daqui?” Depois lembrei-me de que, antes deme
levar ao diretor, estivera a falar da minha mãe.
Dissera-me que era preciso enterrá-la depressa, porque naplanície
fazia muito calor, sobretudo nesta terra. Fora entãoque me confiara
ser de Paris e que dificilmente o esquecia. EmParis fica-se com o
morto, às vezes três ou quatro dias. Aquinão há tempo, mal nos
habituamos à idéia e temos logo quecorrer atrás do carro funerário.
A mulher dele dissera-lheentão: “Cala-te, não são coisas que se
digam ao senhor”. O velho corara e desculpara-se. Eu interviera
para dizer: “Não,não…” Achava o que ele estava dizendo verdadeiro
einteressante.
Na pequena morgue ele confiou-me que entrara no asilo
comoindigente. Como se sentia ainda válido, oferecera -se para
olugar de porteiro. Observei que, no fim de contas, era tambémum
pensionista. Disse-me que não. Tinha já reparado na formacomo se
referia a «eles», aos «outros», e mais raramente aos «velhos»,
falando de pensionistas, alguns dos quais não eram mais velhos do
que ele. Mas não era a mesma coisa, evidentemente. Como era
porteiro tinha direitos sobre osoutros, em certa medida.
A enfermeira entrou nesta altura. A tarde caíra muito depressa.
Muito depressa, a noite escurecera, por detrás davidraça. O porteiro
manejou o interruptor e eu fiquei por momentos cego pelo

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aparecimento súbito da luz. Convidou-mepara ir jantar ao refeitório.
Mas eu não tinha fome.
Ofereceu-se, então, para me trazer uma chávena de café com leite.
Como gosto muito de café com leite, aceitei, e ele voltou alguns
instantes depois com uma bandeja. Bebi. Tive então vontade de
fumar. Mas hesitei, porque não sabia se opodia fazer diante da mãe.
Pensei, e concluí que isso nãotinha importância nenhuma. Ofereci
um cigarro ao porteiro efumamos os dois.
A certa altura, disse-me: “Não sei se sabia, mas os amigos da
senhora sua mãe vêm também velar. É o costume. Tenho que
irbuscar cadeiras e café.” Perguntei-lhe se não se poderiaapagar
uma das lâmpadas. O reflexo da luz nas paredes brancas cansava-
me. Respondeu-me que não…

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