A Ilha Misteriosa – Júlio Verne

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Jules Verne
A ILHA MISTERIOSA
EDIÇÃO COMENTADA E ILUSTRADA
Apresentação:
Rodrigo Lacerda
Tradução e notas:
André Telles

SUMÁRIO
Apresentação:
Por trás de um livro de aventura, RODRIGO LACERDA
A ILHA MISTERIOSA
PRIMEIRA PARTE
Os náufragos do ar
SEGUNDA PARTE
O degredado
TERCEIRA PARTE
O segredo da ilha
Pequeno glossário de termos náuticos
Cronologia: vida e obra de Jules Verne

APRESENTAÇÃO
Por trás de um livro de aventura
QUAIS OS ERROS E ACERTOS DA NOSSA CIVILIZAÇÃO? Como avaliar o grau de humanidade nos
indivíduos da nossa espécie e o que, na essência, nos diferencia dos animais? Que atitude
devemos ter com relação às forças superiores que colocam em risco os prodigiosos avanços do
nosso modo de vida?
Os críticos mais pedantes diriam que indagações tão elevadas jamais poderiam se formar na
cabeça do leitor a partir de um simples livro juvenil, ou de aventura. Mas são exatamente esses
os temas de suprema importância existencial que Jules Verne discute em A ilha misteriosa. E, o
que é melhor, faz isso sem sacrificar uma gota de seu talento para narrativas cheias de ação e
emoção.
Nascido em 1828, em Nantes, cidade portuária na região francesa da Bretanha, Jules Verne
ainda muito jovem foi marcado pela leitura de dois romances: um que já era clássico em sua
época, Robinson Crusoé (1719), do escritor inglês Daniel Defoe, e outro então mais recente
porém de grande sucesso, Os Robinsons suíços, do pastor suíço Johann David Wyss. Em ambos,
os personagens naufragam em terras isoladas e desertas, tendo de reconstruir a civilização a
partir do nada. Tamanho foi o impacto dessas obras no imaginário do Ocidente, e portanto na
literatura, que a partir delas constituiu-se um mito característico da nossa civilização, essa
fantasia do recomeço a partir do zero — do qual, por sua vez, derivou um gênero literário à
parte, as “robinsonadas”, classificação usada sempre que essa essência de história reaparece.
Mais do que uma fonte de exotismo e pitoresco, a robinsonada é um mito estruturante, cujo fio
condutor é uma viagem sim, mas extraordinária, pois é uma viagem e, ao mesmo tempo, algo que
ultrapassa um mero deslocamento no espaço. Seus heróis solitários, confrontados com a
natureza e consigo mesmos, reencontram um sentido para a vida e descobrem sua verdade
profunda.
Jules Verne, antes de se profissionalizar como escritor, teria de enfrentar a pressão do pai
para que seguisse a carreira de advogado. Sentiu-se de tal forma arrebatado por esses dois
livros que explicou assim sua obstinação: “Os Robinsons foram os livros da minha infância e
deles guardei uma lembrança indelével. Minhas frequentes releituras só a deixaram mais forte e,
na verdade, não pude jamais encontrar depois, em autores modernos, o impacto que senti na
primeira idade. Sem dúvida meu gosto por esse gênero de aventuras me pôs instintivamente no
caminho que eu deveria seguir um dia.”
Aos poucos Jules Verne foi se encontrando como escritor e finalmente estabeleceu a parceria
que iria mudar sua vida, com o editor Pierre-Jules Hetzel (1814-86), que participaria
ativamente da elaboração e desenvolvimento de quase todos os seus livros. O primeiro trabalho
que fizeram juntos foi o conhecido Cinco semanas em um balão (1863). Logo em seguida, em
março de 1864, Hetzel lançava o primeiro número do Magasin d’Éducation et de Recréation,

revista metade didática, metade paradidática. Nessa última metade, numa seção intitulada
“Viagens Extraordinárias”, os romances de Verne seriam ininterruptamente publicados até 1886,
ano da morte do editor. Primeiro na revista, em folhetim, e depois em volumes independentes,
tais aventuras o transformariam no clássico que é hoje e imortalizariam sua parceria com
Hetzel.
Logo após a publicação do célebre 20 mil léguas submarinas (1868-69), surgiu a ideia de
fazerem uma robinsonada. Diz Verne: “Sonho com um Robinson magnífico, é absolutamente
indispensável fazê-lo, é mais forte que eu.” Mas ele não se referia a uma robinsonada qualquer,
expressando o desejo de fazer “um Robinson moderno, diferente de tudo o que já foi feito”.
É fácil constatar o apreço de Jules Verne e seu editor pelas robinsonadas. Antes mesmo de
juntarem forças para produzir A ilha misteriosa, Hetzel havia escrito e publicado em sua
revista, em 1864 e numa parceria com Eugène Muller, certa versão modernizada “revista,
corrigida e atualizada cientificamente” da história dos Robinsons. Muitos anos mais tarde, Jules
Verne retomaria o tema, escrevendo mais três robinsonadas típicas: A escola dos Robinsons
(1882), Dois anos de férias (1888) e A segunda pátria (1900).
O primeiro fruto dessa ideia, Tio Robinson, de 1870, foi no entanto rejeitado pelo editor,
para quem Verne não explorara suficientemente as possibilidades abertas pelo novo tipo de
personagem. O romance ficaria na gaveta até sua publicação póstuma em 1991. Foi trabalhando
para superar essa decepção inicial que Verne escreveu A ilha misteriosa, publicado na revista
de Hetzel alguns anos depois, entre 1º de janeiro de 1874 e 15 de dezembro de 1875.

Recuperando a civilização
A ilha misteriosa parte da seguinte situação: na época da Guerra Civil Americana, cinco
personagens vão parar numa ilha deserta. Até aí, nada difere das robinsonadas já existentes. A
primeira modernização no enredo básico nesse caso é que os personagens não são exatamente
náufragos, sobreviventes do afundamento de algum navio, mas sim “Náufragos do ar”, título da
primeira parte do romance, pois chegam à ilha num balão desgovernado e rasgado por um
furacão. Verne, aliás, sobrevoou a cidade de Amiens no balão Meteoro, no ano de 1873, ou
seja, exatamente durante a composição de A ilha misteriosa.
No romance, a cena da queda propriamente dita, que abre a narrativa, possui grande força
simbólica. Tentando recuperar altitude e salvar-se, os personagens vão aos poucos despojando-
se de todos os “pesos” da civilização que deixarão de integrar assim que baterem no chão:
sacos de areia, instrumentos, armas, munições, dinheiro e objetos pessoais. É um despojamento
absoluto, que dá não só a dimensão dramática da história, como também a dimensão moral.
Dentro do balão estão os cinco personagens que irão compor uma alegoria reduzida da
humanidade. São eles: Gedeon Spillet, um jornalista; Nab, o empregado negro; Bonadventure
Pencroff, um marinheiro; Harbert Brown, o filho adotivo adolescente de Pencroff e, por fim, o
engenheiro Cyrus Smith. Como se vê, um grupo de múltiplos talentos.
Dentre eles, destaca-se Cyrus Smith. O maior protagonista desta nova aventura não é o
marujo, o simples viajante ou as crianças, e sim um engenheiro, personagem moderno por
excelência, dotado de saberes técnicos e científicos inéditos em seus antecessores no gênero.
Embora seja um verdadeiro “homem-biblioteca”, especialista em tudo — física, química,
astronomia, ciências naturais etc. —, não se trata de um desses sábios estimáveis pelo saber
porém tornados ridículos por sua inadaptação à vida prática. Sua profissão de engenheiro faz
dele um homem dinâmico e moderno, com todas as credenciais para liderar o grupo de
náufragos. Graças a ele e a seus múltiplos conhecimentos, os colonos da ilha diferem de seus
antecessores literários, pois, vendo-se tão ou mais desguarnecidos e próximos da selvageria
original quanto eles, terminam por revelar-se mais bem preparados e aptos a reencontrar o nível
de civilização que perderam.
Uma vez na ilha, o pequeno núcleo de colonos irá, em poucos e acelerados anos, refazer toda
a longa trajetória da civilização, da pré-história aos tempos modernos, do domínio do fogo à
fabricação de nitroglicerina, dos primeiros artefatos à pilha elétrica, da cerâmica rudimentar à
instalação de um elevador e de um telégrafo, sem deixar de passar pelo advento da agricultura e
da pecuária. A primeira parte do romance tem, portanto, esse caráter de epopeia, típico das
robinsonadas, agora marcado pela técnica criadora.
Tal reapropriação do mundo físico, tornada possível apenas pelo arsenal de conhecimentos
científicos de Cyrus, encaixava-se maravilhosamente bem no espírito paradidático da seção
“Viagens Extraordinárias”. Ao conciliar de forma tão orgânica o conteúdo científico à história
em vias de ser narrada, Jules Verne evita o incômodo que tais digressões provocam em outros
livros, quando o avanço da narrativa, o lado “recreativo” da publicação, parece estar sendo

interrompido, ou pelo menos atrasado, pelo material paradidático que desejava passar para seus
jovens leitores, o lado “educativo” da seção.

A escala da humanidade
Como vimos, nosso grupo de colonos possui virtudes múltiplas e complementares. O engenheiro
Cyrus Smith é grave, sério e reflexivo; Spillet, o cronista da aventura, é homem de ação,
caçador, dotado de conhecimentos de medicina e grande destreza; Pencroff, o marujo, é ingênuo,
emotivo, espontâneo, grande trabalhador e um espírito essencialmente prático; Nab, o serviçal
negro de Cyrus, leva ao extremo a virtude da fidelidade e admira o patrão com uma humildade
comovente; e Harbert é uma versão juvenil de Cyrus Smith, vivendo ao longo do livro uma
intensa experiência de passagem para a vida adulta.
É evidente que a pequena colônia se aproxima da sociedade real na medida em que conserva
suas divisões, desigualdades sociais, raciais e relações de dominação: chefe e subordinado
(Cyrus e os outros), patrão e serviçal (Cyrus e Nab), professor e discípulo (Cyrus e Harbert),
pai e filho (Pencroff e Harbert), trabalhador intelectual e braçal (Spilett e Pencroff). Vemos aí
os germes do que, num registro estritamente realista, decerto geraria graves conflitos internos.
É comum se utilizar o artifício de uma viagem a um país fantástico para apresentar a imagem
de sociedades ideais ou criticar indiretamente a sociedade contemporânea do escritor, e Jules
Verne era, sabidamente, um grande crítico do cientificismo de sua época, que colocava o avanço
técnico e do capital acima de todo humanismo. Sua crítica social, no entanto, não é feita pela
construção de uma distopia, mas sim mediante a construção de uma sociedade em que o
progresso técnico e material não resulta na desagregação do espírito coletivo. Embora o
engenheiro seja o seu chefe natural, o grupo só é bem-sucedido em seu esforço civilizatório
porque o mix de qualidades de seus integrantes, ao mesmo tempo em que lhe dá força — a
energia…

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