A Insustentavel Leveza do Ser

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“Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando
por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível.”

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER
Milan Kundera

Milan Kundera nasceu em 1929 em Brno, na Checoslováquia. Em 1975, fixou
residência em Paris, tendo entretanto adotado a nacionalidade francesa. Toda a
sua obra ficcional (A Insustentável Leveza do Ser, A Brincadeira, A Valsa do
Adeus, A Vida não é Aqui e a Imortalidade), bem como o ensaio A Arte do
Romance, se encontram editados em Portugal.
Principais prémios que obteve: Prémio da União dos Escritores Checoslovacos
(1968); Prémio Médicis (1973); Prémio Mondello (1978); Prémio
Commonwealth (1981); Prémio Literário Americano do Los Angeles Times
(1984); Prémio Jerusalém (1985).

Primeira Parte
O PESO E A LEVEZA

O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu
dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu
se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e
outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato?
O mito do eterno retorno diz-nos, pela negativa, que esta vida, que há-de
desaparecer de uma vez por todas para nunca mais voltar, é semelhante a uma
sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se
encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que
seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm qualquer sentido. Não
vale mais do que uma guerra qualquer do século XIV entre dois reinos
africanos, embora nela tenham perecido trezentos mil negros entre suplícios
indescritíveis.
Mas algo se alterará nessa guerra do século XIV entre dois reinos africanos se,
no eterno retorno, se vier a repetir um número incalculável de vezes?
Sem dúvida que sim: passará a erguer-se como um bloco perdurável cuja
estupidez não terá remissão.
Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa
orgulhar-se-ia com certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a
algo que nunca mais voltará, esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a
palavras, teorias, discussões, mais leves do que penas, algo que já não
aterroriza ninguém. Há uma enorme diferença entre um Robespierre que
apareceu uma única vez na história e um Robespierre que eternamente voltasse
para cortar a cabeça aos franceses.
Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em
que as coisas não nos aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a
circunstância atenuante da sua fugacidade. Essa circunstância atenuante
impede-nos, com efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenar-se o que é
efémero? As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da
nostalgia; mesmo a guilhotina.
Não há muito, eu próprio me defrontei com o fato: parece incrível mas, ao folhear
um livro sobre Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; faziam-me
lembrar a minha infância passada durante a guerra; diversas pessoas da minha
família morreram nos campos de concentração dos nazistas, mas o que eram
essas mortes comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar um
tempo perdido da minha vida, um tempo que nunca mais há-de voltar?
Esta minha reconciliação com Hitler deixa entrever a profunda perversão inerente
ao mundo fundado essencialmente sobre a inexistência de retorno, porque nesse
mundo tudo se encontra previamente perdoado e tudo é, portanto, cinicamente
permitido.

2

Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes,
ficamos pregados à eternidade como Jesus Cristo à cruz. Que ideia atroz! No
mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável
responsabilidade. Era o que fazia Nietzsche dizer que a ideia do eterno retorno
é o fardo mais pesado (das schwerste Gewicht).
Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as
nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas,
na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o
fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo
tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto
mais pesado
for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e
verdadeira é.
Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne
mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o
semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes.
Que escolher, então? O peso ou a leveza?
Foi a questão com que se debateu Parménides, no século VI antes de Cristo.
Para ele, o universo estava dividido em pares de contrários: luz-sombra;
espesso-fino; quente-frio; ser-não ser. Considerava que um dos pólos da
contradição era positivo (o claro, o quente, o fino, o ser) e o outro, negativo. Esta
divisão em pólos positivos e negativos pode parecer de uma facilidade pueril.
Excepto num caso: o que é positivo: o peso ou a leveza?
Parménides respondia que o leve é positivo e o pesado, negativo. Tinha razão ou
não? O problema é esse. Mas uma coisa é certa: a contradição pesado-leve é a
mais misteriosa e ambígua de todas as contradições.

3

Há vários anos que ando a pensar em Tomas, mas só à luz destas reflexões é
que o vi pela primeira vez com toda a nitidez. Vejo-o de pé, a uma janela da sua
casa, a olhar fixamente para o prédio em frente do outro lado do pátio. Sem saber
o que fazer.
Conhecera Tereza mais ou menos há três semanas numa cidadezinha da
Boémia. Só tinham passado pouco mais de uma hora juntos. Ela acompanhara-o
à estação e tinha esperado até ele entrar no comboio. Dez dias mais tarde, veio
vê-lo a Praga. Fizeram amor logo no próprio dia da sua chegada. Durante a
noite, Tereza ficou cheia de febre e passou uma semana inteira com gripe em
casa dele.
Sentiu então um amor inexplicável por essa rapariga que mal conhecia. Parecia-
lhe uma criança que alguém pusera numa cesta untada com pez e abandonara
às águas de um rio para ele recolher na margem da sua cama.
Ficou uma semana em casa dele e, depois, uma vez curada, voltou para a cidade
onde morava, a duzentos quilómetros de Praga. E é aqui que se situa o momento
de que falei há pouco e onde vejo a chave da vida de Tomas: está de pé à janela a
olhar fixamente para o prédio em frente do outro lado do pátio, e reflecte: “Deve-
lhe propor que venha instalar-se em Praga? É uma responsabilidade que o
apavora. Se a convida agora a vir passar uns dias a sua casa, ela virá
imediatamente oferecer-lhe a vida inteira”.
Ou deve renunciar? Nesse caso, Tereza continuará a ser criada numa cervejaria
daquele buraco de província e nunca mais a verá.
Quer que ela venha ter consigo ou não?
Olha para o pátio, tem os olhos fixos no prédio em frente e procura uma resposta.
Volta, ainda e sempre, à imagem daquela mulher deitada no seu divã; nunca
conhecera ninguém assim. Não era nem uma amante nem uma esposa. Era uma
criança que tirara de uma cesta untada com pez e que pousara na margem da
sua cama. Ela adormecera. Ajoelhou-se ao seu lado. O hálito febril acelerou-se e
ouviu um leve gemido. Encostou o rosto ao dela e soprou algumas palavras de
repouso para dentro do seu sono. Um instante depois, pareceu-lhe que a
respiração de Tereza se acalmava e que o seu rosto se levantava maquinalmente
em direcção ao dele. Cheirava-lhe nos lábios o cheiro um pouco acre da febre e
aspirava-o como se se quisesse impregnar da intimidade do seu corpo. Pôs-se
então a pensar que Tereza já lá morava em casa há muitos anos e que estava
moribunda. De repente, tornou-se-lhe evidente que não sobreviveria à sua morte.
Deitar-se-ia a seu lado para morrer também. Escondeu o rosto contra o dela na
almofada e assim ficou por longo tempo.
Neste momento, está de pé à janela e invoca esse instante. O que seria que
assim se dava a conhecer senão o amor?
Mas o amor era isso? Tinha-se convencido de que queria morrer ao lado dela, e
este sentimento era manifestamente excessivo: se era só a segunda vez que a
via! Não seria antes a relação histérica de um homem que, ao aperceber-se, no
seu foro íntimo, da sua incapacidade para amar, começava a representar para si

próprio a comédia do amor? Ao mesmo tempo, o seu subconsciente era de tal
modo covarde que escolhia para essa comédia uma pobre criada de província
que não tinha praticamente hipótese nenhuma de entrar na sua vida!
Olhava para as paredes sujas do pátio e percebia que não sabia se aquilo era
histeria ou amor.
E, numa situação em que qualquer homem a sério saberia imediatamente como
agir, censurava-se intimamente por hesitar e por assim privar o momento mais
belo da sua…

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