A Tumba – H.P. Lovecraft

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A TUMBA
H. P. Lovecraft

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A TUMBA
H. P. Lovecraft
Tradução: Renato Suttana

Ao relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste
asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual criará dúvidas
naturais acerca da autenticidade de minha narrativa. É grande infortúnio o fato
de que o grosso da humanidade seja limitado demais, em sua visão mental, para
pesar com paciência e inteligência esses fenômenos isolados, vistos e sentidos
apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais jazem fora de toda
experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe
nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem
como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e mentais de cada
indivíduo, mediante os quais nos tornamos conscientes delas; mas o
materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão
superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.
Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um
sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida
comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio
social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado desde sempre em reinos
que não pertencem ao mundo visível, passando minha juventude e minha
adolescência debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os
campos e bosques das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li
nesses livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros
rapazes leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer
mais detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca de meu
intelecto que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam.
Basta-me relatar os eventos, sem analisar as causas.
Disse que vivi afastado do mundo visível, mas não disse que vivi sozinho.
Isso nenhuma criatura humana poderia fazer, desde que, à falta da camaradagem

dos vivos, inevitavelmente se entra na companhia de coisas que não são – ou não
mais estão – vivas. Próximo à minha casa existe um vale arborizado bastante
singular, em cujas profundezas crepusculares eu passava grande parte de meu
tempo a ler, a pensar e a sonhar. Pelas suas encostas cobertas de musgo ensaiei
meus primeiros passos de infância, e em volta de seus carvalhos grotescamente
retorcidos se teceram minhas primeiras fantasias de juventude. Conheci as
dríades dessas árvores e não raro assisti às suas danças selvagens sob os raios
vacilantes de uma lua pálida, mas acerca dessas coisas não devo falar agora.
Falarei apenas da tumba solitária em meio ao matagal mais escuro do declive – a
tumba abandonada dos Hydes, uma velha e nobre família cu jo último
descendente direto fora depositado em seus negros recessos muitas décadas
antes de eu nascer.
O pórtico a que me refiro é feito de granito ancestral, lavado e descolorido
pelas névoas e pela umidade de muitas gerações. Escavada na encosta, apenas a
entrada da construção é visível. A porta – uma pesada e proibitiva laje de pedra
– pende de dobradiças de metal enferrujado e, ligeiramente aberta, jaz lacrada
por pesadas correntes de ferro e cadeados, de acordo com um repulsivo costume
de meio século atrás. A residência do clã cujos descendentes estão enterrados
aqui coroou certa vez o declive no qual está a tumba, mas há muito tombou
vitimada pelas chamas que desceram do céu na forma de um relâmpago. Daquela
tempestade que à meia-noite destruiu essa lúgubre mansão os habitantes mais
velhos da região às vezes falam entre sussurros e inquietações, aludindo ao que
chamam de “ira divina” de um modo que nos últimos anos fez crescer vagamente
o fascínio que eu sentia pelo sepulcro encravado na mata. Um homem apenas
pereceu no fogo. Quando o último dos Hydes foi enterrado neste local de sombra
e quietude, a triste urna de cinzas veio de uma terra distante, para a qual a família
se mudou quando a mansão pegou fogo. Não resta ninguém para colocar flores
diante do portal de granito, e muito poucos se dão ao trabalho de enfrentar as
sombras depressivas que parecem guardar estranhamente as pedras lavadas
pelas chuvas.

Jamais esquecerei aquele entardecer em que, pela primeira vez, me deparei
com a semioculta casa da morte. Foi em pleno verão, quando a alquimia da
natureza transmuda a paisagem silvestre numa única e quase homogênea massa
de verde, quando os sentidos estão quase intoxicados com os mares afluentes de
verdura úmida e os odores sutilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Numa
tal ambientação a mente perde suas perspectivas, o tempo e o espaço tornam-se
triviais e irreais, e ecos de um esquecido passado pré-histórico batem
insistentemente contra a consciência enlevada.
Durante o dia todo eu tinha estado a perambular através dos bosques
místicos do vale, a conceber pensamentos que não há que discutir e a conversar
com coisas que não há que nomear. Com apenas dez anos, eu tinha visto e ouvido
muitas maravilhas que a turba desconhecia e já era espantosamente maduro em
certos aspectos. Quando, depois de abrir caminho entre duas touceiras de
arbustos, subitamente deparei com a entrada da cripta, não tinha o menor
conhecimento acerca do que encontrara. Os blocos negros de granito, a porta
curiosamente semicerrada e os entalhes funerais sobre o arco não despertaram
em mim quaisquer associações de caráter fúnebre ou terrível. Sobre sepulturas e
tumbas eu sabia e devaneara bastante, mas fora poupado, devido ao meu
temperamento peculiar, de todo contato com adros e cemitérios. A estranha casa
de pedra escondida entre o mato na encosta constituía para mim apenas uma
fonte de interesse e especulação, e seu interior frio e úmido, para dentro do qual
eu espiava através da excruciante abertura, não me sugeria nada de morte ou
decadência. Mas naquele instante de curiosidade nasceu o desejo loucamente
irracional que me trouxe até este inferno de confinamento. Espicaçado por uma
voz que deve ter vindo da alma medonha da floresta, tomei a decisão de penetrar
na escuridão que me convocava, a despeito das pesadas correntes que impediam
minha passagem. Na luz evanescente do dia chacoalhei insistentemente os
obstáculos enferrujados, na esperança de abrir a porta de pedra, e até mesmo
experimentei espremer meu corpo magro através do pouco espaço disponível,
mas essas tentativas não surtiram efeito. Curioso no início, tornei-me frenético e,
quando ao anoitecer retornei a casa, jurara aos cem deuses da mata que a

qualquer custo um dia haveria de forçar minha entrada nas profundezas escuras
e gélidas que pareciam me chamar. O médico de barba grisalha que todos os dias
vem até meus aposentos certa vez disse a um visitante que essa decisão marcou
o começo de uma lamentável monomania; mas deixarei o julgamento final a
cargo de meus leitores, depois que souberem de tudo.
Os meses subseqüentes à minha descoberta foram gastos em tentativas
fúteis de forçar o complicado cadeado da cripta semicerrada, bem como em
perquirições cuidadosas e vigilantes acerca da natureza e da história da
construção. Com os ouvidos tradicionalmente receptivos de um menino, aprendi
muito, embora uma discrição habitual não me permitisse contar a ninguém sobre
o meu conhecimento ou minha resolução. Será talvez importante mencionar que
não fiquei nem um pouco surpreso ou aterrorizado com a natureza do pórtico.
Minhas idéias bastante originais acerca da vida e da morte tinham me levado a
associar, de maneira vaga, a argila fria com o corpo que respira, e senti que a
grande e sinistra família da mansão incendiada estava de algum modo dentro do
espaço de pedra que eu procurava explorar. Lendas murmuradas acerca de ritos
exóticos e festins pagãos de épocas passadas, ocorridos dentro do vestíbulo
ancestral, despertaram em mim um novo e irresistível interesse pela tumba, em
frente a cuja porta eu me sentaria durante horas diariamente. Um dia acendi uma
vela diante da entrada obstruída, mas nada pude ver a não ser um lance
descendente de degraus de pedra úmida. O odor do lugar me repelia e ao mesmo
tempo me enfeitiçava. Sentia como se já o tivesse conhecido num passado remoto,
anterior a toda lembrança, anterior mesmo à habitação deste corpo que agora
possuo.
No ano seguinte àquele em que vi a tumba pela primeira vez, deparei-me,
no sótão cheio de livros de minha casa, com uma tradução corroída das Vidas de
Plutarco. Ao ler a vida de Teseu, fiquei por demais impressionado com a
passagem em que se fala da enorme pedra sob a qual o menino herói haveria de
encontrar as pistas sobre seu destino assim que se tornasse adulto o suficiente
para erguer o grande peso. A lenda teve o efeito de aplacar minha aguda
impaciência em atravessar o portal, fazendo-me sentir que a hora ainda não

chegara. Mais tarde – eu disse a mim mesmo – crescerei e adquirirei força e
habilidade…

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