Esaú e Jacó
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1904.
ADVERTÊNCIA
Quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos
manuscritos, rijamente encapados em papelão . Cada um dos primeiros seis tinha
o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a
tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.
A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim,
era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas
não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia
desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas,
com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e,
posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por
alusão, algumas aventuras, nem assim de ixava de ser a narrativa estranha à
matéria dos seis cadernos. Último por quê?
A hipótese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos
outros, não é natural, salvo se queria obrigar à leitura dos seis, em que tratava de
si, antes que lhe conhecessem esta outra história, escrita com um pensamento
interior e único, através das páginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do
homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando
fizesse, valia a pena satisfazê-la? Ele não representou papel eminente neste
mundo; percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se. Nos lazeres do ofício,
escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria
(e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.
Tal foi a razão de se publicar somente a narrativa. Quanto ao título, foram
lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir. Ab ovo, por exemplo,
apesar do latim; venceu, porém, a idéia de lhe dar estes dois nomes que o próprio
Aires citou uma vez:
ESAÚ E JACÓ
Dico, che quando l’anima mal nata…
Dante
CAPÍTULO PRIMEIRO
COISAS FUTURAS!
Era a primeira vez que as duas iam ao Morro do Castelo. Começaram de subir pelo
lado da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita
haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos
podem dizer que conhecem uma cidade inte ira. Um velho inglês, que aliás andara
terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só
conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo.
Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o Morro
do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871,
era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o mal
calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante,
continuavam a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu
para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que
desciam ou subiam, lavadeiras e soldad os, algum empregado, algum lojista,
algum padre, todos olhavam espantados pa ra elas, que aliás vestiam com grande
simplicidade; mas há um donaire que se não perde, e não era vulgar naquelas
alturas. A mesma lentidão do andar, comparada à rapidez das outras pessoas,
fazia desconfiar que era a primeira vez que ali iam. Uma crioula perguntou a um
sargento: “Você quer ver que elas vão à cabocla?” E ambos pararam a distância,
tomados daquele invencível desejo de co nhecer a vida alheia, que é muita vez
toda a necessidade humana.
Com efeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o número da casa da
cabocla, até que deram com ele. A casa era como as outras, trepada no morro.
Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada à aventura. Quiseram
entrar depressa, mas esbarraram com dois sujeitos que vinham saindo, e
coseram-se ao portal. Um deles perguntou-lhes familiarmente se iam consultar a
adivinha.
— Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir muito disparate…
— É mentira dele, emendou o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde tem o
nariz.
Hesitaram um pouco; mas, logo depois ad vertiram que as palavras do primeiro
eram sinal certo da vidência e da franqueza da adivinha; nem todos teriam a
mesma sorte alegre. A dos meninos de Nati vidade podia ser miserável, e então…
Enquanto cogitavam passou fora um carteiro, que as fez subir mais depressa, para
escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham também vexame da opinião, como
um devoto que se benzesse às escondidas.
Velho caboclo, pai da adivinha, conduziu as senhoras à sala. Esta era simples, as
paredes nuas, nada que lembrasse mistério ou incutisse pavor, nenhum petrecho
simbólico, nenhum bicho empalhado, esqu eleto ou desenho de aleijões. Quando
muito um registro da Conceição colado à parede podia lembrar um mistério,
apesar de encardido e roído, mas não metia medo. Sobre uma cadeira, uma viola.
— Minha filha já vem, disse o velho. As senhoras como se chamam?
Natividade deu o nome de batismo soment e, Maria, como um véu mais espesso
que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão, — porque a consulta era só de
uma, — com o número 1.012. Não há que pasmar do algarismo; a freguesia era
numerosa, e vinha de muitos meses. Também não há que dizer do costume, que é
velho e velhíssimo. Relê Ésquilo, meu amigo, relê as Eumênides, lá verás a Pítia,
chamando os que iam à consulta: “Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se,
segundo o uso, na ordem marcada pela sorte “… A sorte outrora, a numeração
agora, tudo é que a verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca a sua vez de
audiência. Natividade guardou o bilhete, e ambas foram à janela.
A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpétua menos que Natividade. A aventura
parecia audaz, e algum perigo possível. Não ponho aqui os seus gestos; imaginai
que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma dizia nada. Natividade confessou
depois que tinha um nó na garganta. Felizmente, a cabocla não se demorou
muito; ao cabo de três ou quatro minutos, o pai a trouxe pela mão, erguendo a
cortina do fundo.
— Entra, Bárbara.
Bárbara entrou, enquanto o pai pegou da viola e passou ao patamar de pedra, à
porta da esquerda. Era uma criaturinha leve e breve, saia bordada, chinelinha no
pé. Não se lhe podia negar um corpo airo so. Os cabelos, apanhados no alto da
cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um solidéu natural, cuja
borla era suprida por um raminho de arruda. Já vai nisto um pouco de sacerdotisa.
O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não
fossem também lúcidos e agudos, e neste último estado eram igualmente
compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo,
revolviam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada e outro
revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou qual fascinação.
Bárbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha e entregou-lhe os retratos
dos filhos e os cabelos cortados, por lhe haverem dito que bastava.
— Basta, confirmou Bárbara. Os meninos são seus filhos?
— São.
— Cara de um é cara de outro.
— São gêmeos; nasceram há pouco mais de um ano.
— As senhoras podem sentar-se.
Natividade disse baixinho à outra que “a cabocla era simpática”, não tão baixo que
esta não pudesse ouvir também; e daí po de ser que ela, receosa da predição,
quisesse aquilo mesmo para obter um bom destino aos filhos. A cabocla foi sentar-
se à mesa redonda que estava no centro da sala, virada para as duas. Pôs os
cabelos e os retratos defronte de si. Olhou alternadamente para eles e para a
mãe, fez algumas perguntas a esta, e ficou a mirar os retratos e os cabelos, boca
aberta, sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que acendeu um cigarro, mas digo,
porque é verdade, e o fumo concorda com o ofício. Fora, o pai roçava os dedos na
viola, murmurando uma cantiga do sertão do Norte:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho…
Enquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de expressão,
radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. Bárbara…