Estrelas Tortas – Walcyr Carrasco

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Estrelas Tortas
WALCYR CARRASCO

Capa e ilustrações de: Getúlio Delphin
Editora Moderna, 1997
ISBN 85-16-01596-3

Digitalizado por SusanaCap
www.portaldetonando.com.br/forumnovo/

SUMÁRIO

1. Gui …………………………………………………………………. 3
2. Mariana ………………………………………………………. 16
3. Bira ……………………………………………………………… 24
4. Aída …………………………………………………………….. 31
5. Gui ………………………………………………………………. 48
6. Emílio ………………………………………………………….. 57
7. Bruno …………………………………………………………… 62
8. Gilda ……………………………………………………………. 70
9. Marcella ……………………………………………………… 79
10. Gui ……………………………………………………………… 86
ORIENTAÇÃO DE LEITURA ………………………… 89

1. Gui

“Sua
irmã
nunca
mais vai
andar.”
Foi assim
que papai
me deu a
notícia.
Quando
ele falou,
fiquei um
tempão tentando entender o que
queria dizer, exatamente. Como
assim, a Marcella nunca mais vai
andar? Puxa, não é por nada,
mas a minha irmã sempre foi a
principal jogadora de vôlei do
colégio. Era só um ano
mais velha do que eu, mas já
parecia uma moça. Na escola, muita gente
pensava que ia virar modelo logo logo.
(Hoje em dia, muitas meninas se tornam
modelo ainda bem novinhas.)
Marcella era também minha companheirona. Sei lá, pode
até parecer que sou covarde, mas a Marcella vivia me protegendo,
desde pequeno. Talvez porque, quando eu era bem criança,

Tive bronquite alérgica. Nem lembro bem como era, mas dizem
que eu tossia tanto que até tinham medo de que eu botasse o
pulmão pra fora. Desde então, ela cuidava de mim. Sempre me
ajudava nos trabalhos da escola. Principalmente nos de
Matemática, porque nunca fui muito bom com números. Na saída
da escola, se a molecada vinha com brincadeira boba, como
roubar mochila, ela dava uma bronca, e não deixava. A turma
vivia brincando, porque a Marcella era superatlética, das
melhores em Educação Física, e eu, não. Nunca fui bom de gol.
Pra dizer a verdade, quando os capitães iam escolher os times, eu
sempre ficava por último.
E por isso que não conseguia acreditar. Como, justamente a
Marcella, nunca mais ia poder andar? Não podia ser verdade.
Tudo tinha acontecido tão depressa, que eu ainda estava fa-
zendo esforço para entender. Na sexta-feira passada, mamãe e
Marcella tinham saído para visitar vovó Gilda. Ela morava numa
cidade bem perto da nossa, só uma hora e meia de estrada. Eu não
pude ir, porque tinha muito trabalho de escola e minhas notas
andavam péssimas. Mamãe disse que voltaria no dia seguinte.
Eu ainda falei, quando saíram:
— Pede pra vovó fazer rosquinhas!
Sempre que mamãe a visitava, vovó mandava uns doces
deliciosos.
De madrugada, acordei
com umas batidas na porta.
Era a vizinha, que a gente
mal conhecia, porque tinha
se mudado para o bairro
havia pouco tempo. Ouvi
quando meu pai atendeu.
Falaram rapidamente.
Estava chamando para
atender um telefonema
urgente. Meu pai saiu.

Eu sabia que alguma coisa estava acontecendo. Ninguém te-
lefona para ninguém de madrugada. Ainda mais na casa da vizi-
nha! A palavra urgente me dava medo. Fiquei na cama, de olhos
abertos, curioso. Dali a pouco meu pai entrou, apressado.
— Guilherme, levanta depressa. Tenho de sair. Telefonaram
para dona Matilde. Sua mãe e sua irmã sofreram um acidente. Vou
deixar você na casa da vizinha.
Aí eu tive certeza de que o problema era grave. Meu pai
só me chama de Guilherme quando está nervoso. O resto do
tempo é Gui.
— Que aconteceu, pai?
— Um caminhão bateu no nosso carro.
Dei um pulo na cama, com uma dor horrível no peito.
— A mãe… a mãe morreu, pai?
Era incrível ver meu pai daquele jeito. Parecia… parecia com
vontade de chorar. Eu pensava que homem desse tamanho não
chora nunca! Tive vontade de fazer mais perguntas, mas ele já
estava abrindo a cômoda e tirando minha roupa.
— Depressa, Guilherme. Vista-se. Eu não posso deixar você
sozinho aqui em casa. A dona Matilde disse que você pode passar
o resto da noite lá na casa dela.
— Ah, pai, deixa eu ir com você.
— De jeito nenhum. O hospital é frio. Elas estão internadas.
— Pai, deixa, deixa! Eu quero ficar perto da mamãe!
Vi que ele hesitava. Consegui me vestir rapidamente. Corri
para o banheiro, escovei os dentes. Acho horrível o gosto ruim na
boca, quando a gente acorda. Saímos. Dona Matilde estava na
porta da casa dela, com o marido. Meu pai explicou:
— Ele faz questão de ir comigo. Desculpe.
— Que é isso? Coitadinho… deve estar aflito. Mas, se
quiser, amanhã ele pode passar o dia com a gente — disse
dona Matilde.
O marido abanou um chaveiro.
— Posso levar vocês.
— Não se preocupe, pego um táxi.

Ele insistiu:
— Que é isso? Vocês não vão achar táxi nenhum a esta hora.
Faço questão.
Retirou o carro, entramos. Notei que papai estava em ponto de
bala. Nervoso, emocionado. Quando chegamos, o vizinho avisou:
— Conte comigo para o que precisar.
— Obrigado.
Descemos. O hospital estava tão frio que senti até os ossos
gelarem. Meu pai foi para a recepção. Explicou quem era. Subi-
mos de elevador até um outro corredor, vazio, sem poltronas, com
chão cinza. O médico de plantão veio conversar com a gente, com
uma prancheta na mão. Era um rapaz, bem mais novo que meu
pai, e parecia cansado. Ouvi quando explicou:
— Pelo que sei, o motorista do caminhão estava dormindo.
Atravessou a estrada e bateu no carro delas. Com o impacto, o
carro voou longe. O caminhão perdeu completamente o controle e
caiu da ponte.

— E minha mulher? Minha filha?
— Calma… calma, meu senhor. Estamos fazendo o possí-
vel. Sua mulher… aqui está… dona Aída… sofreu fratura em um
dos braços. Bateu a cabeça, aparentemente sem conseqüências,
mas só saberemos amanhã, depois da tomografia. A garota,
Marcella… tudo indica que estava sem cinto de segurança.
Quando o carro recebeu o choque, a porta se abriu e ela… bem…
ela voou pelo ar e caiu no asfalto.
Os dois ficaram um momento em silêncio, se olhando. O
médico encheu a boca de ar, como se fosse soprar uma bexiga.
Tomou coragem e continuou:
— Sua filha… bem… ela sofreu fratura nas duas pernas…
e… também… a medula foi afetada, logo acima da bacia.
Meu pai não estava entendendo. Nem eu.
— Ela está bem? Corre risco de vida?
— Também houve uma batida forte na cabeça, mas tudo in
dica que é um problema mais leve. O problema… o problema mais
sério… é a lesão na medula.
O médico ficou quieto um segundo, procurando as palavras.
— Ainda não podemos avaliar qual a capacidade de
recuperação de sua filha. Ocorre que as lesões nas células
nervosas… as células nervosas não se recuperam, como as outras.
Quando são seccionadas… cortadas, como no caso de sua filha…
elas perdem a função.
— Não estou entendendo.
— São as células nervosas que conduzem os impulsos do
cérebro por todo o corpo. Os músculos, os membros, funcionam
comandados pelo cérebro.
— Claro, isso eu sei.
— O interior da medula é formado por um feixe de células…
de nervos… Quando eles sofrem uma lesão… bem… toda a
região comandada pára de funcionar. Fizemos os testes com sua
filha. .. as plantas dos pés, por exemplo, não reagem à sensação
de queimadura… a cócegas…
— Quer dizer que…

Subitamente, meu pai
começou a chorar. Fiquei
parado, olhando, sem
entender o que estava
acontecendo. Na hora,
toda essa conversa sobre
células parecia uma
tremenda perda de tempo.
Eu queria ver mamãe e
Marcella. Só mais tarde,
lembrando de cada
palavra, consegui entender
o que tinha acontecido. Eu
só percebia que o médico
estava tentando contar
alguma coisa a meu pai.
Alguma coisa terrível.
Pouco depois, papai se
acalmou. Entrei com ele
numa pequena sala, com
paredes de vidro, onde
Marcella estava deitada, sozinha. Parecia adormecida. Suas pernas
estavam engessadas. O tronco também. Tinha um curativo na
cabeça. Um frasco de soro ao lado da cama, pingando em sua veia.
Odiei o cheiro de hospital. Depois, fomos ver mamãe. Estava em
outro local. Era uma enfermaria com vários leitos. Adormecida,
também com soro na veia, um braço enfaixado e um curativo na
testa.
— Mamãe! — eu disse.
Ela não me ouviu, é claro. Fomos para o saguão… o médico
disse que não adiantava ficar ali, porque elas passariam a noite
sob cuidados. Não acordariam, devido aos remédios. Papai sen-
tou-se em um sofá verde, muito sujo. Fiquei a seu lado.
— O que aconteceu com Marcella, papai? O que o médico
disse?

Ele me abraçou apertado.
— Depois a gente conversa.
— Ela… e mamãe… elas vão morrer?
— Não, querido. Logo estarão de volta pra casa.
Abracei papai, preocupado. Mas também estava exausto.
morrendo de sono. Ele me deitou no sofá, deixou que mergulhas-
se a cabeça no seu colo. Adormeci.
Acordei muito, muito cedo com o barulho. A entrada do hos-
pital estava cheia de gente falando, gritando, chorando. Macas
com pessoas feridas, transportadas de um lado pro outro. Papai
me levou, pela mão, até uma lanchonete. Pediu uma média para
cada um e um pão com manteiga.
— Gui, daqui a pouco você vai poder falar com sua mãe.
Talvez, também, com a Marcella. Mas, depois,…

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