Histórias da Meia-Noite – Machado de Assis

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Histórias da Meia-Noite

Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

ÍNDICE

ADVERTÊNCIA

A PARASITA AZUL

AS BODAS DE LUÍS DUARTE

ERNESTO DE TAL

AURORA SEM DIA

O RELÓGIO DE OURO

PONTO DE VISTA

ADVERTÊNCIA

Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem
outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso
tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da
atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de
estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo,
são as mais desambiciosas do mundo.

Aproveito a ocasião que se me ofer ece para agradecer à crítica e ao
público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há
tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora
de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.

M. A.

A PARASITA AZUL

ÍNDICE

CAPÍTULO PRIMEIRO

CAPÍTULO II

CAPÍTULO III

CAPÍTULO IV

CAPÍTULO V

CAPÍTULO VI

CAPÍTULO VII

CAPÍTULO PRIMEIRO
VOLTA AO BRASIL

Há cerca de dezesseis anos, desembar cava no Rio de Janeiro, vindo da
Europa, o Sr. Camilo Seabra, goiano de nascimento, que ali fora estudar
medicina e voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudades no
coração. Voltava depois de uma ausê ncia de oito anos, tendo visto e
admirado as principais coisas que um homem pode ver e admirar por lá,
quando não lhe falta gosto nem meio s. Ambas as coisas possuía, e se
tivesse também, não digo muito, mas um pouco mais de juízo, houvera
gozado melhor do que gozou, e com justiça poderia dizer que vivera.

Não abonava muito os seus sentim entos patrióticos o rosto com que
entrou a barra da capital brasileira. Trazia-o fechado e merencório, como
quem abafa em si alguma cois a que não é exatamente a bem-

aventurança terrestre. Arrastou um olhar aborrecido pela cidade, que se
ia desenrolando à proporção que o navio se dirigia ao ancoradouro.
Quando veio a hora de desembarcar fê-lo com a mesma alegria com que
o réu transpõe os umbrais do cárcere. O escaler afastou-se do navio em
cujo mastro flutuava uma bandeira tricolor; Camilo murmurou consigo:

— Adeus, França!

Depois envolveu-se num magnífico silêncio e deixou-se levar para terra.

O espetáculo da cidade, que ele nã o via há tanto tempo, sempre lhe
prendeu um pouco a atenção. Não tinha, porém, dentro da alma o
alvoroço de Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era antes pasmo e tédio.
Comparava o que via agora com o que vi ra durante longos anos, e sentia
a mais e mais apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o minava.
Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e ali
determinou passar alguns dias, ante s de seguir para Goiás. Jantou
solitário e triste com a mente cheia de mil recordações do mundo que
acabava de deixar, e para dar ainda maior desafogo à memória, apenas
acabado o jantar, estendeu-se num canapé, e começou a desfiar consigo
mesmo um rosário de cruéis desventuras.

Na opinião dele, nunca houvera mortal que mais dolorosamente
experimentasse a hostilidade do destino. Nem no martirológio cristão,
nem nos trágicos gregos, nem no Livr o de Jó havia sequer um pálido
esboço dos seus infortúnios. Veja mos alguns traços patéticos da
existência do nosso herói.

Nascera rico, filho de um proprietário de Goiás, que nunca vira outra terra
além da sua província natal. Em 1828 estivera ali um naturalista francês,
com quem o comendador Seabra travou relações, e de quem se fez tão
amigo, que não quis outro padrinho para o seu único filho, que então
contava um ano de idade. O naturalista, muito antes de o ser, cometera
umas venialidades poéticas que mereceram alguns elogios em 1810, mas
que o tempo — velho trapeiro da et ernidade — levou consigo para o
infinito depósito das coisas inúteis. Tudo lhe perdoara o ex-poeta, menos
o esquecimento de um poema em qu e ele metrificara a vida de Fúrio
Camilo, poema que ainda então lia com sincero entusiasmo. Como
lembrança desta obra da juventude, chamou ele ao afilhado Camilo, e
com esse nome o batizou o padre Maciel, a grande aprazimento da família
e seus amigos.

— Compadre, disse o comendador ao na turalista, se este pequeno vingar,
hei de mandá-lo para sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra
coisa em que se faça homem. No caso de lhe achar jeito para andar com
plantas e minerais, como o senhor, não se acanhe; dê-lhe o destino que
lhe parecer como se fora seu pai, que o é, espiritualmente falando.

— Quem sabe se eu viverei nesse tempo? disse o naturalista.

— Oh! há de viver! protestou Seab ra. Esse corpo não engana; a sua
têmpera é de ferro. Não o vejo eu andar todos os dias por esses matos e
campos, indiferente a sóis e a chuvas, sem nunca ter a mais leve dor de
cabeça? Com metade dos seus trabalho s já eu estava defunto. Há de
viver e cuidar do meu rapaz, apenas ele tiver concluído cá os seus
primeiros estudos.

A promessa de Seabra foi pontualmen te cumprida. Camilo seguiu para
Paris, logo depois de alguns preparatórios, e ali o padrinho cuidou dele
como se realmente fora seu pai. O comendador não poupava dinheiro
para que nada faltasse ao filho; a mesada que lhe mandava podia bem
servir para duas ou três pessoas em iguais circunstâncias. Além da
mesada, recebia ele por ocasião da Páscoa e do Natal amêndoas e festas
que a mãe lhe mandava, e que lhe ch egavam às mãos debaixo da forma
de alguns excelentes mil francos.

Até aqui o único ponto negro na existência de Camilo era o padrinho, que
o trazia peado, com receio de que o rapaz viesse a perder-se nos
precipícios da grande cidade. Quis, porém, a sua boa estrela que o ex-
poeta de 1810 fosse repousar no nada ao lado das suas produções
extintas, deixando na ciência alguns vestígios da sua passagem por ela.
Camilo apressou-se a escrever ao pai uma carta cheia de reflexões
filosóficas.

O período final dizia assim:

Em suma, meu pai, se lhe parece que eu tenho o necessário juízo para
concluir aqui os meus estudos, e se tem confiança na boa inspiração que
me há de dar a alma daquele que lá se foi deste vale de lágrimas para
gozar a infinita bem-aventurança, deixe-me cá ficar até que eu possa
regressar ao meu país como um cidadã o esclarecido e apto para o servir,
como é do meu dever. Caso a sua vontade seja contrária a isto que lhe
peço, diga-o com franqueza, meu pa i, porque então não me demorarei
um instante mais nesta terra, que já foi meia pátria para mim, e que hoje
(hélas!) é apenas uma terra de exílio.

O bom velho não era homem que pudesse ver por entre as linhas desta
lacrimosa epístola o verdadeiro sentimento que a ditara. Chorou de
alegria ao ler as palavras do filho, mostrou a carta a todos os seus
amigos, e apressou-se a responder ao rapaz que podia ficar em Paris todo
o tempo necessário para completar os seus estudos, e que, além da
mesada que lhe dava, nunca recu saria tudo quanto lhe fosse
indispensável em circunstâncias imprevistas. Além disto, aprovava de
coração os sentimentos que ele manifestava em relação à sua pátria e à
memória do padrinho. Transmitia-lhe muitas recomendações do tio Jorge,
do Padre Maciel, do Coronel Veiga, de todos os parentes e amigos, e
concluía deitando-lhe a bênção.

A resposta paterna chegou às mãos de Camilo no meio de um almoço,
que ele dava no Café de Madri a do is ou três estróinas de primeira
qualidade. Esperava aquilo mesmo, mas não resistiu ao desejo de beber à
saúde do pai, ato em que foi acompanhado pelos elegantes milhafres seus
amigos. Nesse mesmo dia planeou Camilo algumas circunstâncias
imprevistas (para o comendador) e o próximo correio trouxe para o Brasil
uma extensa carta em que ele agradecia as boas expressões…

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