Iaiá Garcia
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. I,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em folhetins, a partir de 01/01/1878, em O Cruzeiro.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Luís Garcia transpunha a soleira da porta, para sair, quando apareceu um criado e
lhe entregou esta carta:
“5 de outubro de 1866.
Sr. Luís Garcia — Peço-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas horas da
tarde. Preciso de seus conselhos, e talvez de seus obséquios. — VALÉRIA.”
— Diga que irei. A senhora está cá no morro?
— Não, senhor, está na Rua dos Inválidos.
Luís Garcia era funcionário público. Desde 1860 elegera no lugar menos povoado
de Santa Teresa uma habitação modesta, onde se meteu a si e a sua viuvez. Não
era frade, mas queria como eles a solidão e o sossego. A solidão não era absoluta,
nem o sossego ininterrompido; mas eram sempre maiores e mais certos que cá
embaixo. Os frades que, na puerícia da cidade, se tinham alojado nas outras
colinas, desciam muita vez, — ou quando o exigia o sacro Ministério, ou quando o
governo precisava da espada canônica, — e as ocasiões não eram raras; mas
geralmente em derredor de suas casas não ia soar a voz da labutação civil. Luís
Garcia podia dizer a mesma coisa; e, porque nenhuma vocação apostólica o
incitava a abrir a outros a porta de seu refúgio, podia dizer-se que fundara um
convento em que ele era quase toda a comunidade, desde prior até noviço.
No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um
anos. Era alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar circunspecto. Suas
maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um
observador atento podia adivinhar por trás daquela impassibilidade aparente ou
contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi
precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e cepticismo, com seus
laivos de desdém. O desdém não se revelava por nenhuma expressão exterior; era
a ruga sardônica do coração. Por fora, havia só a máscara imóvel, o gesto lento e
as atitudes tranqüilas. Alguns poderiam temê-lo, outros detestá-lo, sem que
merecesse execração nem temor. Era inofen sivo por temperamento e por cálculo.
Como um célebre eclesiástico, tinha para si que uma onça de paz vale mais que
uma libra de vitória. Poucos lhe queriam deveras, e esses empregavam mal a
afeição, que ele não retribuía com afeição igual, salvo duas exceções. Nem por
isso era menos amigo de ob sequiar. Luís Garcia amava a espécie e aborrecia o
indivíduo. Quem recorria a seu préstimo, era raro que não obtivesse favor.
Obsequiava sem zelo, mas com eficácia, e tinha a particularidade de esquecer o
benefício, antes que o beneficiado o esquecesse.
A vida de Luís Garcia era como a pessoa dele, — taciturna e retraída. Não fazia
nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia lá dentro a melancolia da
solidão. Um só lugar podia chamar-se alegre; eram as poucas braças de quintal
que Luís Garcia percorria e regava todas as manhãs. Erguia-se com o sol, tomava
do regador, dava de beber às flores e à hortaliça; depois, recolhia-se e ia trabalhar
antes do almoço, que era às oito hora s. Almoçado, descia a passo lento até à
repartição, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente as gazetas do dia.
Trabalhava silenciosamente, com a fr ia serenidade do método. Fechado o
expediente, voltava logo para casa, de tendo-se raras vezes em caminho. Ao
chegar a casa, já o preto Raimundo lhe havia preparado a mesa, — uma mesa de
quatro a cinco palmos, — sobre a qual punha o jantar, parco em número,
medíocre na espécie, mas farto e saboro so para um estômago sem aspirações
nem saudades. Ia dali ver as plantas e reler algum tomo truncado, até que a noite
caía. Então, sentava-se a trabalhar até às nove horas, que era a hora do chá.
Não somente o teor da vida tinha e ssa uniformidade, mas também a casa
participava dela. Cada móvel, cada objeto, — ainda os ínfimos, — parecia haver-se
petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa hora, como que se
enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, à hora costumada; abriam-se
as mesmas janelas e nunca outras. A regu laridade era o estatuto comum. E se o
homem amoldara as coisas a seu jeito, não admira que amoldasse também o
homem. Raimundo parecia feito expressamente para servir Luís Garcia. Era um
preto de cinqüenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seus largos dias, um
tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre. Quando Luís Garcia o
herdou de seu pai, — não avultou mais o espólio, — deu-lhe logo carta de
liberdade. Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregara-o ao colo e
amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de
o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para
rasgar a carta de alforria, mas arrepend eu-se a tempo. Luís Garcia viu só a
generosidade, não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração
todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu.
— És livre, disse Luís Garcia; viverás comigo até quando quiseres.
Raimundo foi dali em diante um como espírito externo de seu senhor; pensava por
este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas as suas ações, não menos
silenciosas que pontuais. Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora
e no lugar competente. Raimundo, posto fosse o único servidor da casa, sobrava-
lhe tempo, à tarde, para conversar com o antigo senhor, no jardinete, enquanto a
noite vinha caindo. Ali falavam de seu pequeno mundo, das raras ocorrências
domésticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ou outra
circunstância exterior. Quando a noite caía de todo e a cidade abria os seus olhos
de gás, recolhiam-se eles a casa, a passo lento, à ilharga um do outro.
— Raimundo hoje vai tocar, não é? dizia às vezes o preto.
— Quando quiseres, meu velho.
Raimundo acendia as velas, ia buscar a marimba, caminhava para o jardim, onde
se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozes de África, memórias
desmaiadas da tribo em que nascera. O canto do preto não era de saudade;
nenhuma de suas cantilenas vinha afinada na clave pesarosa. Alegres eram,
guerreiras, entusiastas; por fim calava-se. O pensamento, em vez de volver ao
berço africano, galgava a janela da sala em que Luís Garcia trabalhava e pousava
sobre ele como um feitiço protetor. Quaisquer que fossem as diferenças civis e
naturais entre os dois, as relações domésticas os tinham feito amigos.
Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a
primeira era uma filha.
Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia mais festivo da
semana. No sábado, à tarde, acabado o jantar, descia Raimundo até à Rua dos
Arcos, a buscar a sinhá moça, que estava sendo educada em um colégio. Luís
Garcia esperava por eles, sentado à porta ou encostado à janela, quando não era
escondido em algum recanto da casa para fazer rir a pequena. Se a menina o não
via à janela ou à porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde não era
difícil dar com ele, porque os recantos eram poucos. Então caíam nos braços um
do outro. Luís Garcia pegava dela e sentava-a nos joelhos. Depois, beijava-a,
tirava-lhe o chapelinho, que cobria os cabelos acastanhados e lhe tapava parte da
testa rosada e fina; beijava-a outra vez, mas então nos cabelos e nos olhos, — os
olhos, que eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa.
Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá. No colégio,
como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com
igual nome, acrescentavam-lhe o apelido de família. Esta era Iaiá Garcia. Era alta,
delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da andorinha. A
boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não toldavam as
dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade. Longos e
muitos eram os beijos trocados com o pai. Luís Garcia punha-a no chão, tornava a
subi-la aos joelhos, até que consentia finalmente em separar-se dela por alguns
instantes. Iaiá ia ter com o preto.
— Raimundo, o que é que você me guardou?
— Guardei uma coisa, respondia ele sorrindo. Iaiá não é capaz de adivinhar o que
é.
— É uma fruta.
— Não é.
— Um passarinho?
— Não adivinhou.
— Um doce?
— Que doce é?
— Não sei; dá cá o doce.
Raimundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava a lembrança
guardada. Era às vezes um confeito, outras uma fruta, um inseto esquisito, um
molho de flores. Iaiá festejava a lembrança do escravo, dando saltos de alegria e
de agradecimento. Raimundo olhava para ela, bebendo a felicidade que se lhe
entornava dos olhos, como um jorro de água…