O HORROR NO MUSEU – Conto Clássico de Terror – H.P.
Lovecraft
O HORROR NO MUSEU
H.P. Lovecraft
(1890 – 1937)
Tradução: Renato Suttana
1
Foi apenas curiosidade o que levou Stephen Jones ao Museu Rogers pela
primeira vez. Alguém lhe falara a respeito do estranho lugar subterrâneo na
Southwark Street, do outro lado do rio, onde criaturas de cera muito mais
horrendas que as piores efígies do Madame Tussauds estavam expostas; e num
dia de abril ele resolveu entrar para conferir que tipo de desapontamento iria ter.
Curiosamente, não se desapontou. Afinal, alguma coisa diferente e notável
estava ali. Decerto, os velhos lugares-comuns sangüinários não poderiam faltar:
Landru, Doutor Crippen, Madame Demers, Rizzio, Lady Jane Grey, infindáveis
vítimas da guerra e da revolução, e monstros como Gilles de Rais e o Marquês de
Sade; mas também outras coisas que aceleraram sua respiração e o fizeram
permanecer até ouvir o toque de fechar. O homem que tinha montado aquela
coleção não poderia ser um charlatão ordinário. Havia imaginação, e até um
toque de genialidade doentia, em algumas das peças.
Mais tarde ele se informou sobre George Rogers. O homem tinha sido da equipe
do Tussauds, mas algum problema ocorrera que resultara em sua demissão.
Ouviram-se rumores acerca de sua sanidade mental e notícias sobre suas loucas
formas de adoração secreta; embora, finalmente, o sucesso de seu próprio museu
no porão acabasse embotando o gume de algumas críticas, ao mesmo tempo em
que aguçava a ponta insidiosa de outras. Teratologia e iconografia do pesadelo
eram seus passatempos; e ele teve mesmo a prudência de alojar discretamente
algumas de suas piores efígies numa alcova especial, destinada somente aos
adultos. Foi essa alcova que tanto fascinou Jones. Havia coisas híbridas e
disformes que só a fantasia seria capaz de gerar, moldadas com arte diabólica e
coloridas de um modo horrivelmente realístico.
Algumas eram figuras de mitos bem conhecidos: górgonas, quimeras, dragões,
ciclopes e todos os seus arrepiantes congêneres. Outras tinham sido tiradas de
mais obscuros e só furtivamente murmurados ciclos de lendas subtérreas: o
negro e disforme Tsathoggua, o multitentacular Cthulhu, o trombudo Chaugnar
Faugn, e outras indizíveis blasfêmias extraídas de livros proibidos como o
Necronomicon, o Livro de Eibon ou o Unaussprechlichen Kulten, de Von Junzt.
Mas as piores eram criações originais de Rogers, representando formas que
nenhuma narrativa da antiguidade teria alguma vez ousado descrever. Muitas
eram repulsivas paródias das formas da vida orgânica que conhecemos, enquanto
outras pareciam ter sido sacadas de sonhos febris de outros planetas e galáxias.
As mais selvagens pintadas por Clark Ashton Smith podem sugerir algumas; mas
nada se compararia ao efeito de pungente, repelente terror gerado pelas suas
grandes dimensões e delirante acabamento artesanal e pelas condições de luz
diabolicamente perspicazes sob as quais eram exibidas.
Stephen Jones, como um descompromissado connoisseur do bizarro na arte,
procurara Rogers pessoalmente no sombrio escritório e estúdio que ficava atrás
do salão de teto abobadado do museu – uma cripta de aspecto demoníaco,
obscuramente iluminada por janelas de correr poeirentas, dispostas
horizontalmente no nível dos paralelepípedos de um pátio escondido. Nesse
lugar é que se fazia a manutenção das imagens, e ali, também, algumas tinham
sido produzidas.
Braços de cera, pernas, cabeças e torsos jaziam em grotesca desordem sobre
vários bancos, ao passo que nas prateleiras das estantes se viam perucas, dentes e
olhos mortiços de vidro espalhados indiscriminadamente. Vestimentas de todos
os tipos pendiam de ganchos; e numa dada alcova havia grandes pilhas de cera
cor-de-carne e prateleiras repletas de latas de tinta e pincéis de todos os formatos.
No centro do cômodo estava a grande forja para preparar a cera a ser moldada,
sua larga boca ocupada por um vasto container de ferro com alças, ao qual se
ligava um tubo que permitiria despejar a cera derretida com um simples toque de
dedo.
Outras coisas, na cripta penumbrosa, seriam mais difíceis de descrever: partes
isoladas de entidades problemáticas cujas formas agrupadas eram fantasmas de
delírio. Numa das extremidades via-se uma porta de madeira maciça, trancada
por um cadeado de tamanho incomum, sobre a qual se achava pintado um
símbolo bastante peculiar. Jones, que já tivera acesso ao temível Necronomicon,
estremeceu involuntariamente ao reconhecer aquele símbolo. Este expositor,
refletiu, deve ser alguém de um saber desconcertantemente vasto acerca dos
assuntos dúbios e negros.
Também a palestra de Rogers não o desapontou. Era um homem alto, esguio e
assaz desalinhado, os grandes olhos negros brilhando em combustão em meio a
uma face pálida e mal barbeada. Não se incomodou com o aparecimento de
Jones e antes pareceu saudar a ocasião de poder se abrir com uma pessoa
interessada. Sua voz era de uma profundidade e de uma ressonância singulares,
mal dissimulando uma ponta de intensidade represa, que bordejava mesmo com
o fervor. Jones não se espantou de que muitos o tivessem julgado louco.
A cada nova visita (e as visitas se tornaram habituais com o passar das semanas),
Jones encontraria Rogers mais comunicativo, mais inclinado às confidências. No
princípio, tinha havido rumores de crenças e práticas estranhas, da parte do
expositor, e mais tarde esses rumores se expandiram em histórias, não obstante
umas poucas e estranhas fotografias corroborantes, cuja extravagância roçaria
pelo cômico. Foi em junho, numa noite em que Jones trouxera uma garrafa de
bom uísque e pôde conversar mais livremente com seu anfitrião, que o discurso
realmente insano despontou. Antes disso, haviam surgido histórias delirantes
demais – relatos de viagens ao Tibete, ao interior da África, ao deserto da Arábia,
ao vale do Amazonas, ao Alasca e a certas ilhas pouco conhecidas do Pacífico
Sul, além de declarações acerca de ter lido livros monstruosos como os
fragmentos Pnacóticos e os cantos Dhol atribuídos ao maligno e inumano Leng
–, mas nada disso fora tão inequivocamente insano quanto o que veio à tona, sob
o influxo do uísque, naquele anoitecer de junho.
Mais abertamente, Rogers passou a se gabar de ter encontrado certas coisas na
natureza que ninguém encontrara antes e de ter trazido à luz evidências de tais
descobertas. De acordo com sua arenga, tinha ido mais longe do que qualquer
outro na interpretação desses livros obscuros e primevos que estudara, e fora
orientado por eles para certos lugares remotos onde insólitos remanescentes se
ocultavam – remanescentes de éons de ciclos de vidas mais antigos que a
humanidade e em alguns casos conectados com outras dimensões e outros
mundos, mundos e dimensões com os quais a comunicação seria frequente em
dias pré-humanos. Jones se maravilhava com uma fantasia tão capaz de conjurar
semelhantes noções e se perguntava qual seria a real história mental de Rogers.
Teria sido o seu trabalho em meio ao grotesco mórbido do Madame Tussaud o
ponto de partida para suas fugas imaginativas ou se tratava de uma tendência
inata, da qual a escolha de sua ocupação fora apenas uma das manifestações? De
qualquer modo, o trabalho do homem estava como que ligado a essas noções.
Mesmo agora não havia que se equivocar com o curso de suas mais negras
sugestões acerca das monstruosidades de pesadelo ocultas atrás da porta onde se
lia “Para adultos somente”. Infenso ao ridículo, ele tentava sugerir que nem todas
essas anormalidades demoníacas eram artificiais.
Foi mesmo o ceticismo e o espanto de Jones diante dessas declarações
irrespondíveis que acabaram quebrando a crescente cordialidade. Rogers – estava
claro – se levava muito a sério, pois agora se tornava moroso e ressentido,
continuando a tolerar Jones somente ao preço de um incontido impulso de
romper o muro de sua incredulidade urbana e complacente. Contos e sugestões
delirantes de ritos e sacrifícios prestados a inomináveis deuses antigos
continuavam; e aqui e ali Rogers mostraria ao hóspede uma das ultrajantes
blasfêmias na alcova reservada e apontaria detalhes difíceis de conciliar mesmo
com a mais refinada artesania humana. Jones prosseguiu, fascinado, com suas
visitas, embora soubesse que tinha desmerecido os interesses de seu anfitrião. Às
vezes, tentaria animar Rogers com um fingido assentimento a alguma sugestão
ou asserção maluca, mas o magro expositor raramente se deixaria enganar por
essas táticas.
A tensão atingiu o ápice mais tarde, em setembro. Jones entrou casualmente no
museu, num certo entardecer, e perambulava pelos corredores sombrios, cujo
horror lhe era agora familiar, quando ouviu um som bastante sinistro,
proveniente do estúdio de Rogers. Outros o ouviram também e, nervosamente,
saíram em disparada, enquanto os ecos reverberavam através do grande porão de
teto arqueado. Os três assistentes trocaram olhares significativos; um deles, um
sujeito negro e taciturno, com ar de estrangeiro, que sempre servira Rogers como
reparador e desenhista assistente, sorriu de um modo que pareceu intrigar seus
colegas e que tocou profundamente alguma faceta da sensibilidade de Jones.
Parecia o ganido ou o uivo de um cão e era um som que só poderia ser produzido
sob condições do mais extremo terror e agonia combinados. Seu frenesi agudo,
angustiado, era impressionante de ouvir e, em toda a sua grotesca anormalidade,
continha…