O Jardim Secreto – Frances Hodgson Burnett

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O Jardim Secreto
Frances Hodgson Brunett
Traduzido por
Ricardo Giassetti
1ª edição

Para o aniversário de nove anos de
Lisa Hart.

CAPÍTULO 1.
NÃO SOBROU NINGUÉM
Q
uando Mary Lennox foi enviada para morar com
seu tio na Mansão Misselthwaite,
1
todos
disseram que era a criança com a aparência mais
desagradável que já haviam conhecido. E o pior é que era
verdade. Seu corpo e cabelos eram finos, e tinha uma
expressão amarga no rosto. Ela toda tinha cor de palha
porque havia nascido na Índia e estava sempre com
alguma doença. Seu pai era funcionário do governo inglês,
sempre ocupado e também doente, enquanto sua mãe,
uma mulher belíssima, só se importava com grandes festas
em companhia de pessoas joviais. Ela não queria uma
menininha de jeito nenhum, e quando Mary nasceu, foi
entregue aos cuidados de uma ama, instruída a manter a
criança fora da vista o máximo possível, se quisesse
agradar à sua Mem Sahib.
2
Assim, enquanto Mary era uma
bebezinha doente, nervosa e feia, foi mantida afastada dos
pais, e quando se tornou uma criancinha doente, nervosa e
feia aprendendo a andar, continuou afastada. Suas únicas
lembranças de infância eram os rostos morenos de sua ama
e dos outros empregados nativos, e como sempre a
obedeciam e a deixavam fazer o que bem quisesse — afinal,
Mem Sahib ficaria irritada caso fosse perturbada com seu

choro —, quando fez seis anos já havia se tornado a
pestinha mais mandona e egoísta que já se vira. A jovem
tutora inglesa que veio ensiná-la a ler e a escrever a odiou
tanto que desistiu do emprego em três meses, e quando
outras tutoras vinham para ocupar seu lugar, cada uma ia
embora mais rápido que a última. Por isso, se a própria
Mary não tivesse decidido que realmente queria saber
como é que se lia os livros, nunca teria aprendido a ler.
Numa manhã extremamente quente, quando já tinha
quase nove anos, ela acordou sentindo-se muito
indisposta, e ficou ainda mais indisposta quando viu que a
empregada ao seu lado na cama não era a sua ama.
— Quem mandou você? — perguntou à desconhecida.
— Não quero você aqui. Vá chamar a minha ama.
A mulher ficou aterrorizada, mas se ateve a balbuciar
que a ama não poderia vir. E quando Mary foi tomada por
um acesso de raiva e a bateu e a chutou, a mulher ficou
ainda mais aterrorizada, repetindo que não seria possível
que a ama viesse atender Missie Sahib.
Havia algo de misterioso no ar daquela manhã. Nada
estava sendo feito como de costume e vários dos
empregados pareciam ter faltado — e mesmo aqueles que
Mary encontrava pareciam fugir ou se apressar com seus
rostos pálidos e assustados. Ninguém queria contar nada a
ela e a ama não aparecia. Na verdade, se viu sozinha
conforme a manhã foi passando e finalmente saiu para o
jardim, para brincar debaixo de uma árvore perto da

varanda. Fingiu que fazia um canteiro de flores e espetou
grandes brotos vermelhos de hibisco em montinhos de
terra. Cada vez mais irritada, murmurava sozinha sobre o
que pretendia falar e os nomes com que xingaria Saidie
quando ela voltasse.
— Porca! Porca! Sua filha de uma porca! — repetia,
porque chamar um nativo de porco é o pior insulto de
todos.
Ela rangia os dentes repetindo essas palavras sem
parar, quando ouviu sua mãe na varanda com outra pessoa.
Estava acompanhada de um belo jovem e ficaram ali
sussurrando com vozes estranhas. Mary conhecia o rapaz,
que parecia um menino. Ela ouvira dizer que era um oficial
muito jovem, recém-chegado da Inglaterra. A menina
olhou para ele, mas olhava mais para sua mãe. Sempre
fazia isso quando tinha a chance de vê-la, porque Mem
Sahib — Mary costumava chamá-la assim mais do que de
qualquer outro nome — era muito alta, magra e linda, e
sempre vestia roupas encantadoras. Seus cabelos eram
como seda desenrolada, tinha um narizinho delicado que
parecia desdenhar das coisas e olhos grandes e iluminados.
Todas as suas roupas eram finas e esvoaçantes, e Mary
dizia que eram “enlaçadas”. Naquela manhã, mais do que
em qualquer outra, suas roupas pareciam ainda mais
cheias de laços, mas seus olhos não estavam nada
sorridentes. Estavam saltados, arregalados e aterrorizados,
e imploravam ao jovem oficial:

— Mas é muito ruim? Me diga! — Mary ouviu sua mãe
dizer.
— Terrível — respondeu o jovem com a voz trêmula. —
Terrível, sra. Lennox. Vocês deveriam ter ido para as
colinas há duas semanas.
Mem Sahib apertou as mãos:
— Ah, eu sei que devíamos — exclamou. — Só fiquei
para poder ir àquele jantar idiota. Que tola eu fui!
Naquele momento, um lamento alto vindo do
alojamento dos empregados fez com que ela se agarrasse
ao braço do jovem, e Mary se levantou, tremendo dos pés à
cabeça. A lamentação ficava cada vez mais fora de
controle:
— O que é isso? O que é isso? — perguntou a sra.
Lennox, sobressaltada.
— Alguém morreu — respondeu o jovem oficial. —
Você não sabia que os empregados já estavam
contaminados?
— Eu não sabia! — gritou Mem Sahib. — Venha
comigo! Venha! — disse, virando-se e correndo para a casa.
Depois disso, mais coisas assustadoras aconteceram e
o clima misterioso daquela manhã foi explicado a Mary.
Tratava-se de um surto de cólera do pior tipo e as pessoas
morriam como moscas. A ama caíra de cama à noite e os
lamentos vindos das cabanas dos empregados anunciavam
a sua morte. Antes do dia seguinte, outros três
empregados morreriam e outros fugiriam aterrorizados. O

pânico estava por todos os lados e havia cadáveres em
todas as casas.
Durante a confusão e o completo espanto do segundo
dia, Mary se escondeu em seu quarto e foi esquecida por
todos. Ninguém pensou nela, ninguém a queria, e mais
coisas estranhas aconteceram, para as quais ela não tinha
explicação. Mary alternava entre chorar e dormir por horas
a fio. Só sabia que as pessoas estavam doentes e ouvia sons
misteriosos e assustadores. Em determinado momento, ela
engatinhou até a sala de jantar, que estava vazia, embora
com uma refeição pela metade sobre a mesa. As cadeiras
estavam afastadas e os pratos pareciam ter sido
empurrados para o centro da mesa, como se as pessoas
tivessem fugido dali no meio da refeição. A criança comeu
algumas frutas e biscoitos e, com sede, bebeu um copo de
vinho quase cheio. Era um vinho doce e, sem que ela
soubesse, muito forte. Em pouco tempo, sentiu-se muito
zonza e voltou para o quarto, trancando-se outra vez,
assustada com os gritos vindos das cabanas e pelo som de
passos apressados. O vinho a deixou tão sonolenta que mal
podia manter os olhos abertos. Deitou-se em sua cama e
ficou alheia a tudo por um bom tempo.
Muitas coisas aconteceram durante as horas em que
dormiu tão profundamente. Nem os lamentos e nem o som
de coisas sendo carregadas para fora dos bangalôs a
perturbaram.

Quando acordou, continuou deitada olhando para o
teto. A casa estava em completo silêncio, nunca havia
ficado assim antes. Não se ouvia mais nem as vozes, nem
os passos, e Mary se perguntou se todos já haviam se
curado da cólera, se o problema estava resolvido.
Perguntou-se também quem tomaria conta dela agora que
sua ama estava morta. Uma nova ama viria, que talvez
soubesse algumas histórias novas. Mary já estava bem
cansada das velhas. Ela não chorou pela morte de sua
cuidadora. Não era uma criança carinhosa e toda aquela
choradeira por causa da cólera a deixou com medo. Estava
irritada porque ninguém parecia se lembrar que ela estava
viva. Todos haviam ficado tão aterrorizados que se
esqueceram da garotinha que não era querida por
ninguém. Parece que, quando as pessoas pegam cólera, só
pensam em si mesmas. Mas se agora todos já estavam
curados, sem dúvida alguém se lembraria e viria ver como
ela estava.
Mas ninguém veio e ela ficou deitada esperando
enquanto a casa ficava mais e mais silenciosa. Ouviu algo
rastejar sobre a colcha e, ao olhar para baixo, viu uma
pequena cobra deslizando e olhando para ela com olhos de
pedras preciosas. Não teve medo porque aquela coisinha
parecia inofensiva, incapaz de feri-la. Parecia que estava
apressada em sair do quarto, e passou por debaixo da porta
sob o olhar da menina.

— Que silêncio esquisito — disse. — Parece que não
tem mais ninguém no bangalô além de mim e da cobrinha.
Quase imediatamente ouviu passos do lado de fora e
depois na varanda. Eram passos de homens, que entraram
no bangalô e falavam baixo. Ninguém foi recebê-los ou
falar com eles, e parecia que estavam abrindo as portas
para olhar todos os quartos.
— Que tristeza! — Mary ouviu uma das vozes dizer.
— Uma mulher tão, tão bela! E acho que a criança
também. Ouvi dizer que tinham uma filha, embora
ninguém saiba dela.
Mary estava em pé no meio do quarto quando abriram
a porta minutos depois. Era uma coisinha feia e
malcuidada, sua testa estava franzida de fome e pela
sensação de completo abandono. O primeiro homem a
entrar era um grande oficial que ela já vira antes
conversando com seu pai. Ele parecia cansado e confuso,
mas quando a viu ficou tão surpreso que quase pulou para
trás.
— Barney! — gritou. — Tem uma criança aqui! Uma
criança sozinha! Em um lugar como este! Misericórdia,
quem será?
— Sou Mary Lennox — disse a menininha, se
aprumando.
Achou que era grosseria o homem chamar o bangalô
de seu pai de “um lugar como este!”.

— Fiquei dormindo quando todos estavam com cólera
e acabei de acordar. Por que ninguém veio aqui?
— É a criança que ninguém tinha visto! — exclamou o
homem para seus amigos. — Ela ficou aqui, esquecida!
— Por que eu fui esquecida? — disse Mary, batendo o
pé. — Por que ninguém tinha aparecido até agora?
O jovem, de nome Barney, olhou para ela com muita
tristeza. Mary até achou tê-lo visto piscar os olhos, como
quando alguém tenta segurar as lágrimas.
— Pobre pequenina — disse —, não sobrou ninguém.
Foi daquele modo estranho e repentino…

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