Stephen King
O NEVOEIRO
Conto originado da tradução do livro Skeleton Crew (Tripulação de Esqueletos).
Editora, Ponto de Leitura, (11 de Janeiro de 2008).
Versão e-book: Ciro Haxāmš
ÍNDICE
I. Chega à tempestade.
II. Depois da tempestade.
III. Chega o nevoeiro.
IV. A área de estocagem.
V. Desentendimento com Norton.
VI. Mais Discussões.
VII. A primeira noite.
VIII. O que aconteceu aos soldados. Com Amanda.
IX. A expedição à farmácia.
X. O fascínio da Sra. Carmody.
XI. O fim.
Stephen King e o Nevoeiro.
Stephen Edwin King (Portland, 21 de setembro de 1947) é um escritor
norte-americano, reconhecido como um dos mais notáveis escritores de
romances e contos de horror fantástico e ficção de sua geração. Os seus livros
venderam mais de 350 milhões de cópias. Sendo publicados em mais de 40
países e muitas das suas obras foram adaptadas para o cinema e a televisão. É o
nono autor mais traduzido em todo o mundo.
O conto o Nevoeiro (The Mist) foi publicado pela primeira vez como a
última e a mais longa, história de terror da antologia de 1980, chamada Dark
Forces, editado por Kirby McCauley. Uma versão reeditada, e mais dinâmica,
foi incluída em um livro de Stephen King de 1985, uma coleção de histórias
curtas, chamada Skeleton Crew (Tripulação de Esqueletos). A história é o maior
conto desta obra, com mais 110 paginas.
Não achando outro meio, optei por lançar a versão e-book da obra em
separado dos outros contos do seu livro original Tripulação de Esqueletos
(Skeleton Crew). Primeiro por não ter uma fonte digital boa em português do
livro, depois por não ter tempo para traduzir e revisar o original em inglês.
I. CHEGA À TEMPESTADE.
Foi como aconteceu. Na noite em que finalmente cedeu a pior onda de
calor da história no norte da Nova Inglaterra — a noite em julho de 19… toda a
região oeste do Maine foi devastada pelas mais terríveis tempestades que já
testemunhei.
Morávamos em Long Lake e vimos a primeira dessas tempestades
abrindo caminho sobre a água, em nossa direção, pouco antes do escurecer.
Durante uma hora o ar havia ficado absolutamente parado. A bandeira
americana colocada por meu pai em nossa casa de barcos, em 1936, jazia
flácida contra seu mastro. Nem mesmo as pontas oscilavam. O calor era como
uma coisa sólida, parecendo tão profundo, tão soturno como água de poço.
Naquela tarde, nós três tínhamos ido nadar, porém a água não causava alívio, a
menos que se fosse bem no fundo. Acontece que, nem eu e nem Steff queríamos
ir para o fundo, porque Billy não podia. Billy tem cinco anos.
Tivemos uma refeição fria às cinco e meia, beliscando desanimadamente
sanduíches de presunto e salada de batata no passadiço que dá para o lago.
Ninguém parecia querer algo mais além de Pepsi, que estava em um balde de
aço com cubos de gelo.
Depois que terminamos, Billy voltou a brincar em suas barras de
exercícios por algum tempo. Eu e Steffy ficamos sentados, sem falar muito,
fumando e espiando o soturno espelho chato do lago até Harrison, no lado oposto
ao nosso. Alguns barcos a motor troavam para lá e para cá. Os pinheiros na
margem contrária pareciam empoeirados e murchos. Para oeste, nuvens
enormes e purpúreas acumulavam-se lentamente, maciças como um exército.
Relâmpagos faiscavam dentro delas. Na casa ao lado, o rádio de Norton,
sintonizado para aquela estação de música clássica, transmitida do alto do Monte
Washington, soltava uma alta torrente de estática, sempre que brilhava algum
relâmpago. Norton era um advogado de Nova Jersey e aquela casa junto ao
Long Lake era apenas uma residência de verão, sem qualquer fornalha ou
calefação. Dois anos antes, havíamos tido uma disputa sobre divisas, que acabou
indo parar no tribunal do condado. Eu venci. Norton dizia que eu vencera porque
ele era um forasteiro. Não havia excessos de amizade entre nós.
Steff suspirou desanimada e abanou o alto dos seios com a barra de sua
frente única.
Duvidei que aquilo a refrescasse muito, mas o movimento melhorava
bastante a vista.
— Não quero assustá-la — falei — mas acho que vem uma tempestade e
tanto por ai.
Ela me fitou dubitativamente.
— Já tivemos trovoadas na noite de anteontem e ontem também, David.
Não deram em nada.
— Esta noite vai ser diferente.
— Você acha?
— Se a coisa ficar preta; vamos para o andar de baixo.
— Acha mesmo que haverá temporal?
Meu pai tinha sido o primeiro a construir uma moradia que resistisse o ano
inteiro, naquele lado do lago. Quando pouco mais do que um garoto, ele e seus
irmãos haviam levantado uma casa de verão onde a nossa agora se assentava,
mas uma tempestade de verão, em 1938, a derrubara até os alicerces, com
paredes de pedra e tudo. Só a casa de barcos escapara. Um ano mais tarde, ele
havia começado a casa grande. Agora, as árvores é que sofrem nos temporais
fortes. Envelheceram e o vento as derruba. É a maneira de a mãe natureza
limpar a casa periodicamente.
— Para ser franco, não sei — falei, em tom sincero. Eu tinha apenas
ouvido histórias sobre a grande tempestade de trinta e oito. — Contudo, o vento
pode soprar do lago como um trem expresso.
Billy apareceu. Pouco depois, queixando-se de que não estava divertido
brincar nas barras de exercício, porque ele estava “todo suado”. Afaguei seus
cabelos, desmanchando-os, e lhe dei outra Pepsi. Mais trabalho para o dentista.
As nuvens cúmulos de trovoadas estavam chegando mais perto,
empurrando o azul do céu. Agora não havia mais dúvida sobre a iminência de
uma tempestade. Norton desligara seu rádio. Billy sentou-se entre sua mãe e eu,
espiando o céu como que fascinado. Os trovões ribombavam, rolando lentamente
através do lago, ecoando e voltando a nós. As nuvens se torciam e rolavam,
agora encimando todo o lago, e pude ver uma coifa delicada de chuva que caía
delas. Tudo ainda muito distante. Enquanto olhávamos, provavelmente devia
estar chovendo em Bolster’s Mills, talvez até em Norway.
O ar começou a mover-se, primeiro intermitente, erguendo a bandeira e
deixando-a cair de novo. Começou a refrescar e a brisa se firmou; primeiro
esfriando a transpiração de nossos corpos, depois parecendo congelá-la.
Foi então que avistei o véu prateado, cruzando o lago. Em segundos,
apagou Harrison da vista e veio direto para nós. Os barcos a motor tinham
desaparecido do cenário.
Billy levantou-se de sua cadeira, uma réplica em miniatura de nossas
cadeiras de diretor, completa com seu nome pintado às costas.
— Papai! Olhe!
— Vamos entrar — falei, levantando-me e passando o braço em torno de
seus ombros.
— Você viu papai? O que era aquilo?
— Um ciclone de água. Vamos entrar.
Steff lançou um olhar rápido e assustado para meu rosto.
— Vamos, Billy — disse em seguida. — Faça o que seu pai mandou.
Entramos pelas portas deslizantes de vidro que dão para a sala de estar.
Fechei as portas, empurrando-as em seus trilhos, depois parei e olhei novamente
para fora. O véu prateado já fizera três-quartos do trajeto através do lago.
Reduzira-se a uma espécie de xícara de chá girando loucamente entre o céu
negro, cada vez mais baixo, e a superfície da água, que ficara cor de chumbo,
raiada de branco cromado. O lago começava a oferecer uma fantástica
semelhança com o oceano, havia ondas enormes que se quebravam e lançavam
espuma acima das docas e quebra-mares. Lá fora, no meio, ondas de crista
espumosa jogavam as cabeças para um e outro lado.
Espiar o ciclone líquido era hipnótico. Estava quase sobre nós, quando um
relâmpago riscou tudo com tanta luminosidade, que a paisagem permaneceu em
negativo nos meus olhos, por trinta segundos depois disso. O telefone fez um
assustado ting! e, quando me virei, vi minha esposa e meu filho, parados bem à
frente do janelão que nos dá uma vista panorâmica do lago a noroeste.
Tive uma daquelas terríveis visões — creio que são reservadas
exclusivamente para maridos e pais — em que a janela panorâmica se
estilhaçava com um som grave de tosse seca, disparando flechas de vidro ao
estômago nú de minha esposa, ao rosto e pescoço de meu garoto. Os horrores da
Inquisição nada são, comparados às sinas que nossa mente arquiteta para os entes
queridos.
Agarrei os dois com firmeza e os puxei dali.
— Diabo, o que estão fazendo? Saiam daí!
Steff deu-me um olhar assustado. Billy apenas olhou para mim como
parcialmente despertado de um sono profundo. Guiei-os para a cozinha e apertei
o interruptor da luz.
O telefone tilintou novamente.
Então, o vento chegou. Era como se a casa houvesse decolado, imitando
um 747. Ouvia-se um assobio arquejante e agudo, às vezes aprofundando-se em
um rugido grave antes de glissar para um uivo ululante.
— Vá para baixo! — falei para Steff, agora precisando gritar, a fim de
ser ouvido.
Diretamente acima da casa, os trovões estremeciam pranchas
gigantescas e Billy encolheu-se, agarrado à minha perna.
— Venha você também! — gritou Steff.
Assenti, fazendo gestos para acalmá-la. Precisei arrancar Billy de minha
perna.
— Vá com sua mãe. Preciso apanhar algumas velas, para o caso da luz
faltar.
Ele a seguiu, e eu comecei a abrir armários. Velas são coisas engraçadas,
sabem como é.
A gente as guarda, todas as primaveras, sabendo que uma tempestade de
verão pode interromper a energia elétrica. No entanto, chegado o momento, elas
se escondem.
Agora, eu vasculhava o quarto armário, passando pelos quinze gramas de
erva que comprara com Steff, quatro anos atrás, mas que ainda não fora
inteiramente fumada, passando pelas dentaduras chocalhantes de dar corda,
pertencentes a Billy e compradas na Loja de Novidades de Auburn, passando
pelas fotos espalhadas que Steff sempre esquecia de colar em nosso álbum. Olhei
debaixo de um catálogo da Sears e atrás de uma boneca Kewpie, de Taiwan, que
eu ganhara na Feira de Fryeburg, derrubando garrafas de leite em…