Os miseráveis
Aljâhiz
Edição Bilíngue
Os miseráveis
Aljâhiz
Anedotas selecionadas, adaptadas
e traduzidas por
Safa A-C Jubran
INTROITO
A
pelidado de Aljâhiz, em razão de seus olhos esbu-
galhados, Abu-
c
Uthmân
c
Amr bin-Bahr Alkinâni
(776-869 d.C.) nasceu e morreu em Basra, no
Iraque. Sua família, possivelmente de origem etíope, teve
uma posição modesta na cidade, no entanto, sua sagacidade e
inteligência o alçaram aos círculos letrados daquela sociedade.
Durante o reinado do sétimo califa abássida,
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Alma’mûn,
entre os anos 813 e 833, Aljâhiz mudou-se para a capital
Bagdá, onde foi patrocinado por vários dignitários, muitas
vezes em troca de uma dedicatória em seus livros.
1 O Califado Abássida foi o terceiro califado islâmico. Durante essa
dinastia, Bagdá, sua capital, foi construída. Isso ocorreu após os
abássidas terem destronado o Califado Omíada, cuja capital era
Damasco, com exceção da região de Al-Andalus. Vários califas
reinaram de 750 a 1258 e, durante esse período, além de Bagdá, a
capital foi transferida para várias cidades: Cufa, Raqqa e Samarra.
O califado prosperou durante dois séculos marcando a chamada
era de ouro do Império Islâmico, até entrar lentamente em declínio.
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Foi um escritor prolífico, responsável por moldar
completamente as regras da prosa árabe. Dissertou sobre
vários temas, inclusive política e religião, porém esses
tratados não chegaram até nós. Deles só temos descrições
feitas por outros escritores. Mesmo assim, Aljâhiz deixou
um legado altamente significativo, do qual destacamos o
Livro da eloquência e da oratória (Kitâb albayân wat-tabyîn),
composto de seleções de obras literárias, incluindo discur-
sos, poemas, comentários e tratados. Essa obra ajudou a
estabelecer as primeiras bases eruditas da retórica árabe e
da filosofia da linguagem. É considerado o segundo mais
importante trabalho do autor. O primeiro é o Livro dos
animais (Kitâb alhayawân), que inaugura a zoologia escrita
em árabe — muito embora já houvesse, antes dele, quem
escrevesse sobre esse tema, como Al’asma
c
i (740-828) e
Assujistâni, que produziram textos sobre determinado
animal ou grupo, como cavalos, camelos, abelhas ou aves,
e cujos interesses eram mais linguísticos que científicos.
Aljâhiz, além da língua e da poesia, trouxe neste livro estu-
dos sobre a natureza dos animais, seus instintos, condições
e hábitos. O Livro dos animais é composto de sete volu-
mes contendo contos, provérbios, anedotas e descrições
em formato poético. Versa sobre mais de 350 animais e,
muito embora siga o conhecimento e as teorias científicas
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vigentes em seu tempo, também enfatiza a influência do
meio ambiente e estabelece princípios semelhantes aos
da teoria da seleção natural e das cadeias alimentares em
uma linguagem literária refinada. O terceiro livro é o que
serviu como base para esta tradução. Trata-se do Livro dos
miseráveis (Kitâb albukhalâ’), considerado uma enciclopédia
científica, literária, social, histórica e geográfica. Nele, Al-
jâhiz escreve sobre as pessoas avarentas que conhecia. Por
essa razão, o autor é muitas vezes narrador e personagem
de seus próprios textos. Também há relatos que chegaram
ao conhecimento de Aljâhiz por meio das narrativas de
terceiros. Mesmo assim, é possível imaginar que muitas
de suas personagens sejam inventadas.
Em prosa vigorosa e retratando vários tipos sociais,
o autor satiriza a ganância dos mestres, estudiosos, can-
tores, comerciantes, escribas, pedintes, entre outros.
Descreve seus personagens de forma realista, astuta e
bem-humorada, porém sem julgá-los e sem a pretensão
de difamá-los. No final de uma de suas anedotas a esse
respeito ele afirma:
“Não mencionamos os nomes dos indivíduos que trazem
desgraça para si mesmos em razão de sua vergonhosa avareza,
nem daqueles que a disfarçam. Os primeiros, por respeito a eles
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e ao seu direito de permanecerem anônimos; os outros, sendo
velados seus gestos por Deus, não nos dão o direito de difamá-los,
pois talvez as circunstâncias os tivessem obrigado a tal atitudes.
Quando um nome é citado, às vezes, é porque a própria pessoa
encara sua avareza como algo jocoso e se diverte com as próprias
histórias, considerando-as divertidas”.
Embora o tema não fosse inédito, pois já constavam
notícias de avareza e avaros, foi Aljâhiz quem o elevou ao
nível literário. Parece que os registros anteriores tomavam
dois caminhos: em um estavam aqueles que intenciona-
vam macular os árabes naquilo que mais prezavam, isto é, a
hospitalidade e a generosidade, insinuando que aquilo que
aquele povo elegia como motivo de orgulho não passava
de palavrório e, assim, essas notícias tinham a finalidade de
ridicularizar e insultar aquela sociedade; em outro, os apoia-
dores e defensores do Estado Abássida, estudiosos e letrados
a serviço do poder, ou até mesmo simples bajuladores que
se esforçaram para macular e desacreditar os descendentes
dos Omíadas (membros do poder anterior).
Seja como for, é importante notar que tudo aquilo
registrado antes de Aljâhiz sobre o tema não passava de
notícias, no sentido informativo, sem refinamento artístico
literário. Ainda e embora tivesse tomado muitas histórias
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dos que o antecederam, foi ele quem tratou do tema com
uma linguagem altamente elegante e, ao mesmo tempo, es-
pirituosa e agradável. O próprio Aljâhiz faz uma declaração
em tom crítico após contar uma série de anedotas breves:
“[…] Essas últimas histórias não me aprazem, já que não há
limites para o exagero ou o excesso. Gosto de me referir àquilo
que se dá entre as pessoas e que possa ser comparado, tanto em
argumento, como em conduta”.
Deste livro, selecionamos histórias e anedotas traduzidas
diretamente do árabe, após ter operado nelas leves mudan-
ças, com o intuito de tornar a linguagem mais assimilável
e o conteúdo mais acessível, porém sem retirá-las de seu
ambiente histórico e social, nem empalidecer suas matizes
medievais. Por isso, embora tivéssemos abreviados nomes
e resumido — em algumas histórias — longas digressões,
típicas do estilo de Aljâhiz, o texto traduzido continua es-
pelhando os traços importantes do original e, para que isso
fosse alcançado, algumas atitudes foram tomadas, entre elas,
e em nível de ilustração, incluir alguns termos transcritos
a partir do original, como os referentes a pesos e medidas
(habba, qirât, dâniq, dirham e ratl), bem como as moedas (dinar,
dirham, fals etc.) cujo valor conservava uma relação com o
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peso,
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daí também a coincidência dos nomes; no entanto,
é preciso lembrar que tanto as medidas como as moedas
mudavam de valor conforme a região e a época.
São anedotas protagonizadas pelo que denominamos,
dependendo da época e da situação, de “avaro”, “avarento”,
“pão-duro”, “mão de vaca”, “mão fechada”, “unha de fome”,
“fuinha”, “fominha”, “ajuntador”, “sovina”, “unhaca”, “mes-
quinho”, entre muitos outros adjetivos, que aqui intitulamos
de Os miseráveis, cuja finalidade essencial é nos entreter com
seus exageros e inventividades, bem como admirar o estilo
de Aljâhiz, sua observação aguda e seu ceticismo, além do
senso de humor desse autor que, como adendo a algumas
anedotas desta obra, afirmou:
“Essas histórias e outras semelhantes são mais divertidas
quando presenciadas e testemunhadas, pois os livros não conseguem
dar uma imagem completa do ocorrido nem transmitir a você sua
identidade, dimensão e realidade”.
2 Apenas a título de ilustração, o valor aproximado, em gramas,
das medidas e pesos mencionados é o seguinte: habba = 0,050
g, qirât = 0,200 g, dâniq = 0,525 g, dirham = 3,125 g e ratl = 300 g. Já
para as moedas, o dinar era de ouro, o dirham, de prata e o fals,
de cobre.
OS MESQUITEIROS
APRENDIAM E ENSINAVAM A
MESQUINHARIA
H
avia em Basra um grupo chamado de “os mes-
quiteiros”. Formado por poetas, contadores de
histórias e pretensos sábios, eram, enfim, homens
que faziam das mesquitas seus fóruns de discussão, onde
passavam a maior parte do tempo. Gostavam de conversar,
trocar histórias e informações sobre determinado saber,
sobre certa arte. Às vezes, eu me juntava a eles para escutar
suas histórias interessantes.
Esse grupo de homens costumava se reunir regular-
mente na mesquita e tinha como doutrina economizar gastos
e multiplicar riquezas. Tal forma de vida era um tipo de
laço de afeição recíproca: certo comensalismo entre seus
membros. Quando se encontravam, passavam informações
em revista, tirando proveito da troca de pontos de vista em
torno do assunto predileto.
Certo dia, um ancião entre eles disse:
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— Como todos sabem, a água do nosso poço é tão salgada
e amarga que chega a causar feridas na boca; nem o burro
a aceita, tampouco os camelos a apreciam. É inútil até para
regar palmeiras, pois causaria sua morte. O rio é distante de
nós, o que torna o transporte de água doce até a casa muito
custoso. Por esse motivo, tentamos misturar a água do poço
com água doce do rio e demos para o nosso burro beber,
o qual, no entanto, adoeceu. Com ele assim inutilizado,
perdemos mais do que economizamos. Passamos então a
dar-lhe água sem mistura; juro, nós o servimos com a mesma
água que nós bebemos! Eu e minha mulher começamos até
a nos banhar com a água doce, temendo que a água salubre
queimasse nossa pele como fizera com o estômago do burro;
e assim aquela água limpa do banho acabava desperdiçada!
“Então, Deus me revelou uma ideia, abrindo diante
de mim as portas da justeza e da reforma. Fui até o local
de banho e de ablução, escavei perto de um dos muros um
grande buraco e reboquei-o com o melhor tipo de argila,
espalhando-a com esmero sobre a superfície até que ficou
parecido à pedra lisa e, finalmente, direcionei a…