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“Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.”
SINOPSE
A vida de Joana é contada desde a infância até a idade adulta através de uma fusão temporal entre o presente e o passado. A
infância junto ao pai, a mudança para a casa da tia, a ida para o internato, a descoberta da puberdade, o professor ensinando-lhe
a viver, o casamento com Otávio. Todos estes fatos passam pela narrativa, mas o que fica em primeiro plano é a geografia
interior de Joana. Ela parece estar sempre em busca de uma revelação. Inquieta, analisa instante por instante, entrega-se àquilo
que não compreende, sem receio de romper com tudo o que aprendeu e inaugurar-se numa nova vida. Ela se faz muitas
perguntas, mas nunca encontra a resposta.
PREFÁCIO
Este é o primeiro romance de Clarice Lispector, e talvez o que se tenha tornado mais
famoso. Publicou-o, em 1944, pela Editora A Noite, quando não tinha mais que dezessete
anos. Álvaro Lins, então o melhor crítico literário do país, manifestou-se imediatamente, não
se furtando a escrever: “Nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de Joyce e
Virgínia Woolf” — autores que, de resto, Clarice ainda não lera e, segundo ela própria
declarou depois, jamais viria a ler…
Pode-se dizer que, desde Perto do Coração Selvagem até Um Sopro de Vida, os contos
e os romances de Clarice são momentos privilegiados — que se cristalizam, através das
palavras, em obras — de uma “inspiração” ininterrupta.
Sobretudo porque, para ela, esta palavra não tinha nada a ver com o sentido meio
esotérico de estado de alma abstrato em que a pessoa se deixa mergulhar e não é
conscientemente responsável pelo que faz.
Para Clarice, inspiração era o conjunto inextrincável de situações existenciais e
sociais em que ela se movia ora com amor, ora com ódio, ora com esperança, ora em
desconsolo, e de onde, em permanente confronto consigo mesma, arrancava suas palavras,
inventava suas ficções. Inspiração, portanto, não lhe aparecia como a fonte onde o poeta, ao
beber, se aliena de si e do mundo.
Inspiração era-lhe, ao contrário, o chão seco em que “lavrava”, à custa de muito suor,
os seus textos. Sua técnica, embora (ou por isso mesmo…) toda intuitiva, já neste primeiro
romance, é de um rigor implacável. Nada é “contado”, no sentido tradicional do termo, mas
escrito: as situações e os personagens surgem através de metáforas, que se articulam
ficcionalmente através do chamado fluxo da consciência. O enredo, a história provável,
constrói-a quem lê; ou seja, a elaboração do “romance” escapa do texto concreto para desafiar
a imaginação do leitor, que se torna co-autor. Assim, aqui se põe em crise a representação do
mundo com seus códigos unívocos; desmitifica-se a relação do homem com este mundo
através destes códigos; desmonta-se a das pessoas entre si; repele todos os cânones da
linguagem que abala as estruturas em que tais comportamentos se ossificam; dilacera-se talvez
o leitor, mas ao preço de abandonar a contemplação medíocre do espetáculo da vida apenas
possível e transformar-se, coração selvagem tomado de alegria, num arquiteto do impossível…
“Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida.”
JAMES JOYCE
PRIMEIRA PARTE
O PAI…
A MÁQUINA DO PAPAI batia tac-tac… tac-tac-tac… O relógio acordou em tin-dlen
sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa.
Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-
rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da
árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.
Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o
grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse
bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem
sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas
iam comer.
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada
veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a
funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos
pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só
faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da
música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves,
alados.
Então subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais
daquela mistura. “Oi, oi, oi…”, gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer
agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a
esperar o que ia acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil distraindo-se com um
movimento do pé descalço no assoalho de madeira poeirento. Esfregou o pé espiando de
través para o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso. Nada veio porém. Nada. Difícil
aspirar as pessoas como o aspirador de pó.
— Papai, inventei uma poesia.
— Como é o nome? — Eu e o sol. — Sem esperar muito recitou: — “As galinhas que
estão no quintal já comeram duas minhocas mas eu não vi”.
— Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia? Ela olhou-o um segundo. Ele
não compreendera…
— O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi as minhocas… —
Pausa.
— Posso inventar outra agora mesmo: “Ó sol, vem brincar comigo”. Outra maior: “Vi
uma nuvem pequena coitada da minhoca acho que ela não viu”.
— Lindas, pequena, lindas. Gomo é que se faz uma poesia tão bonita?
— Não é difícil, é só ir dizendo.
Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde brilhava entre
todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o corpo de Aríete, matava-a. Depois vinha a
fada e a filha vivia de novo. A filha, a fada, o carro azul não eram senão Joana, do contrário
seria pau a brincadeira. Sempre arranjava um jeito de se colocar no papel principal
exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura. Trabalhava séria,
calada, os braços ao longo do corpo. Não precisava aproximar-se de Aríete para brincar com
ela. De longe mesmo possuía as coisas.
Divertiu-se com os papelões. Olhava-os um instante e cada papelão era um aluno.
Joana era a professora. Um deles bom e outro mau. Sim, sim, e daí? E agora agora agora? E
sempre nada vinha se ela… pronto.
Inventou um homenzinho do tamanho do fura-bolos, de calça comprida e laço de
gravata. Ela usava-o no bolso da farda de colégio. O homenzinho era uma pérola de bom, uma
pérola de gravata, tinha a voz grossa e dizia de dentro do bolso: “Majestade Joana, podeis me
escutardes um minuto, só um minuto podereis interromperdes vossa sempre ocupação?” E
declarava depois: “Sou vosso servo, princesa. É só mandar que eu faço”.
— Papai, que é que eu faço?
— Vá estudar.
— Já estudei.
— Vá brincar. — Já brinquei.
— Então não amole.
Deu um corrupio e parou, espiando sem curiosidade as paredes e o teto que rodavam e
se desmanchavam. Andou na ponta dos pés só pisando as tábuas escuras. Fechou os olhos e
caminhou, as mãos estendidas, até encontrar um móvel. Entre ela e os objetos havia alguma
coisa, mas quando agarrava essa coisa na mão, como a uma mosca, e depois espiava —
mesmo tomando cuidado para que nada escapasse — só encontrava a própria mão, rósea e
desapontada. Sim, eu sei o ar, o ar! Mas não adiantava, não explicava. Esse era um de seus
segredos. Nunca se permitiria contar, mesmo a papai, que não conseguia pegar “a coisa”. Tudo
o que mais valia exatamente ela não podia contar. Só falava tolices com as pessoas. Quando
dizia a Rute, por exemplo, alguns segredos, ficava depois com raiva de Rute. O melhor era
mesmo calar. Outra coisa: se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do
relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava
doendo. Ou senão, mesmo quando não lhe doía nada, se ficava defronte do relógio espiando, o
que ela não estava sentindo também era maior que os minutos contados no relógio. Agora,
quando acontecia uma alegria ou uma raiva, corria para o relógio e observava os segundos em
vão.
Foi à janela, riscou uma cruz no parapeito e cuspiu fora em linha reta. Se cuspisse
mais uma vez — agora só poderia à noite — o desastre não aconteceria e Deus seria tão
amigo dela, mas tão amigo que… que o quê?
— Papai, que é que eu faço?
— Eu já lhe disse: vá brincar e me deixe!
— Mas eu já brinquei, juro. Papai riu: —…