Ressureição – Machado de Assis

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Ressurreição

Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1872.

ADVERTÊNCIA DA NOVA EDIÇÃO

Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova
edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três
vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que
vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase da
minha vida literária.

M. DE A.
1905.

ADVERTÊNCIA DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará dele o
leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de contos e novelas,
que há dois anos publiquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai
despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarão com a
justiça que merecer.

A crítica desconfia sempre da modéstia dos prólogos, e tem razão. Geralmente
são arrebiques de dama elegante, que se vê ou se crê bonita, e quer assim
realçar as graças naturais. Eu fujo e benzo-me três vezes quando encaro
alguns desses prefácios contritos e singelos, que trazem os olhos no pó da sua
humildade, e o coração nos píncaros da sua ambição. Quem só lhes vê os
olhos, e lhes diz verdade que amargue, arrisca-se a descair no conceito do
autor, sem embargo da humildade que ele mesmo confessou, e da justiça que
pediu.

Ora pois, eu atrevo-me a dizer à boa e sisuda crítica, que este prólogo não se
parece com esses prólogos. Venho aprese ntar-lhe um ensaio em gênero novo
para mim, e desejo saber se alguma qualidade me chama para ele, ou se todas
me faltam, — em cujo caso, como em outro campo já tenho trabalhado com
alguma aprovação, a ele volverei cuidados e esforços. O que eu peço à crítica
vem a ser — intenção benévola, mas ex pressão franca e justa. Aplausos,
quando os não fundamenta o mérito, afagam certamente o espírito e dão
algum verniz de celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer fazer
alguma coisa, prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia.

No extremo verdor dos anos presumim os muito de nós, e nada, ou quase

nada, nos parece escabroso ou impossível. Mas o tempo, que é bom mestre,
vem diminuir tamanha confiança, deixando-nos apenas a que é indispensável a
todo o homem, e dissipando a outra, a confiança pérfida e cega. Com o tempo,
adquire a reflexão o seu império, e eu incluo no tempo a condição do estudo,
sem o qual o espírito fica em perpétua infância.

Dá-se então o contrário do que era dantes. Quanto mais versamos os modelos,
penetramos as leis do gosto e da arte, compreendemos a extensão da
responsabilidade, tanto mais se nos acanham as mãos e o espírito, posto que
isso mesmo nos esperte a ambição, não já presunçosa, senão refletida. Esta
não é talvez a lei dos gênios, a quem a natureza deu o poder quase
inconsciente das supremas audácias; mas é, penso eu, a lei das aptidões
médias, a regra geral das inteligências mínimas.

Eu cheguei já a esse tempo. Grato às afáveis palavras com que juízes
benévolos me têm animado, nem por isso deixo de hesitar, e muito. Cada dia
que passa me faz conhecer melhor o agro destas tarefas literárias, — nobres e
consoladoras, é certo, — mas difíceis quando as perfaz a consciência.

Minha idéia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele pensamento de
Shakespeare:

Our doubts are traitors,
And make us lose the good we oft might win,
By fearing to attempt.

Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o
contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse
do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o
operário tem jeito para ela.

É o que lhe peço com o coração nas mãos.

M. A.
1872.

CAPÍTULO PRIMEIRO / NO DIA DE ANO BOM

Naquele dia, — já lá vão dez anos! — o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a
janela e cumprimentou o sol. O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do
mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas
brancas, finas e transparentes se destacavam no azul do céu. Chilreavam na
chácara vizinha à casa do doutor algumas aves afeitas à vida semi-urbana,
semi-silvestre que lhes pode oferecer uma chácara nas Laranjeiras. Parecia
que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem a
idade já desfez o viço dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor
com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece
melhor e mais belo, — fruto da nossa ilusão, — e alegres com vermos o ano
que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte.

Teria esta última idéia entrado no es pírito de Félix, ao contemplar a
magnificência do céu e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira
pareceu toldar-lhe a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo
tempo imóvel e absorto, como se inte rrogasse o futuro ou revolvesse o
passado. Depois, fez um gesto de tédio, e parecendo envergonhado de se ter
entregue à contemplação interior de alguma quimera, desceu rapidamente à
prosa, acendeu um charuto, e esperou tranqüilamente a hora do almoço.

Félix entrava então nos seus trinta e seis anos, idade em que muitos já são
pais de família, e alguns homens de Estado. Aquele era apenas um rapaz vadio
e desambicioso. A sua vida tinha sido uma singular mistura de elegia e
melodrama; passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por coisas
fugitivas, e na ocasião em que parecia esquecido de Deus e dos homens, caiu-
lhe nas mãos uma inesperada herança, que o levantou da pobreza. Só a
Providência possui o segredo de não aborrecer com esses lances tão estafados
no teatro.

Félix conhecera o trabalho no tempo em que precisava dele para viver; mas
desde que alcançou os meio
s de não pensar no dia seguinte, entregou-se
corpo e alma à serenidade do repouso. Mas entenda-se que não era esse
repouso aquela existência apática e vegetativa dos ânimos indolentes; era, se
assim me posso exprimir, um repouso at ivo, composto de toda a espécie de
ocupações elegantes e intelectuais que um homem na posição dele podia ter.

Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla da palavra; mas tinha
as feições corretas, a presença simpática, e reunia à graça natural a apurada
elegância com que vestia. A cor do rosto era um tanto pálida, a pele lisa e fina.
A fisionomia era plácida e indiferente, mal alumiada por um olhar de ordinário
frio, e não poucas vezes morto.

Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estas páginas, e
acompanhando o herói por entre as pe ripécias da singelíssima ação que
empreendo narrar. Não se trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um
espírito lógico e igual a si mesmo; trata-se de um homem complexo,
incoerente e caprichoso, em quem se reuniam opostos elementos, qualidades
exclusivas e defeitos inconciliáveis.

Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram
todavia diversas entre si, uma natural e espont ânea, outra calculada e
sistemática. Ambas, porém, se mesclavam de modo que era difícil discriminá-
las e defini-las. Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo se
confundia e baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava
compará-la ao escudo de Aquiles — mescla de estanho e ouro, — “muito
menos sólido”, acrescentava ele.

Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para ocaso de seus
velhos amores. Não eram velhos; tinh am apenas seis meses de idade. E
contudo iam acabar sem saudade nem pe na, não só porque já lhe pesavam,
como também porque Félix lera pouco antes um livro de Henri Murger, em que
achara um personagem com o sestro de stas catástrofes prematuras. A dama
dos seus pensamentos, como diria um poeta, recebia assim um golpe moral e
literário.

Havia meia hora já que o doutor saíra da janela, quando lhe apareceu uma
visita. Era um homem de quarenta anos , vestido com certo apuro, gesto ao
mesmo tempo familiar e grave, estouvado e discreto.

— Entre, Sr. Viana, disse Félix quando o viu aparecer à porta da sala. Vem
almoçar comigo, já sei.

— Esse é um…

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