Triste Fim de Policarpo Quaresma

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Triste Fim de Policarpo
Quaresma
Lima Barreto
Projecto Adamastor

Ficha Técnica
Título: Triste Fim de Policarpo Quaresma
Autor: Lima Barreto
Data Original de Publicação: 1911
Data de Publicação do eBook: 2019
Imagem da Capa: Proclamação da República, de Benedito Calixto
Revisão: Ricardo Lourenço
ISBN: 978-989-8698-59-9
Texto-Fonte: Triste Fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro:
Tipografia Revista dos Tribunais, 1915.
 
O Projecto Adamastor não adopta o Acordo Ortográfico de 1990 nas
suas edições.
Este trabalho foi licenciado com uma Licença Creative Commons –
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.

Índice
Primeira Parte
I
II
III
IV
V
Segunda Parte
I
II
III
IV
V

Terceira Parte
I
II
III
IV
V

A João Luiz Ferreira
Engenheiro civil

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend
insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les
principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort
souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour
mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire.
Ernest Renan, Marc-Aurèle et la Fin du Monde Antique.

Primeira Parte

I
A LIÇÃO DE VIOLÃO
Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por major
Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de
vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era
subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava um
queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa.
Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de forma que, às
três e quarenta, por aí assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia
pisar a soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de São Januário,
bem exatamente às quatro e quinze, como se fosse a aparição de um
astro, um eclipse, enfim um fenômeno matematicamente determinado,
previsto e predito.
A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do
capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí pelas quatro e meia, logo
que o viam passar, a dona gritava à criada: «Alice, olha que são horas; o
major Quaresma já passou.»
E era assim todos os dias, há quase trinta anos. Vivendo em casa
própria e tendo outros rendimentos além do seu ordenado, o major
Quaresma podia levar um trem de vida superior aos seus recursos
burocráticos, gozando, por parte da vizinhança, da consideração e
respeito de homem abastado.
Não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse
cortês com os vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não
tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que
merecera fora a do Dr. Segadas, um clínico afamado no lugar, que não
podia admitir que Quaresma tivesse livros: «Se não era formado, para
quê? Pedantismo!»

O subsecretário não mostrava os livros a ninguém, mas acontecia
que, quando se abriam as janelas da sala de sua livraria, da rua poder-se-
iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.
Eram esses os seus hábitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e
isso provocava comentários no bairro. Além do compadre e da filha, as
únicas pessoas que o visitavam até então, nos últimos dias, era visto
entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias certos, um senhor
baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de
camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um
violão em casa tão respeitável! Que seria?
E, na mesma tarde, uma das mais lindas vizinhas do major convidou
uma amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de cá pra lá, a
palmilhar o passeio, esticando a cabeça, quando passavam diante da
janela aberta do esquisito subsecretário.
Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal
sujeito, empunhando o pinho na posição de tocar, o major, atentamente,
ouvia: «Olhe, major, assim.» E as cordas vibravam vagarosamente a
nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: «É ré, aprendeu?»
Mais não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o
major aprendia a tocar violão. Mas que cousa? Um homem tão sério
metido nessas malandragens!
Uma tarde de sol — sol de março, forte e implacável — aí pelas
cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua…

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