A CIDADE SEM
NOME
H. P. Lovecraft
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A CIDADE SEM NOME
H. P. Lovecraft
Tradução: Renato Suttana
Quando me aproximei da cidade sem nome, compreendi que era
amaldiçoada. Viajando à luz da lua por uma vale ressequido e terrível, eu a via
elevar-se sinistramente à distância por sobre as areias, como as partes de um
cadáver se elevam sobre um túmulo malfeito. O medo ganhava voz nas pedras
imemoriais daquele encanecido sobrevivente do dilúvio, daquele bisavô da mais
antiga das pirâmides; e uma aura invisível me repelia, ordenando que eu
recuasse frente aos segredos funestos que nenhum homem deveria ver e que
nenhum homem jamais ousara ver.
Longínqua, entre os desertos da Arábia, jaz a cidade sem nome, ruinosa e
muda, seus muros baixos quase escondidos sob as areias de eras incontáveis. E já
deviam estar assim antes que as primeiras pedras de Mênfis fossem assentadas e
antes mesmo que os tijolos da Babilônia fossem cozidos. Não há lenda velha o
bastante para lhe dar um nome ou para recordar que ela já esteve viva alguma
vez; mas fala-se dela aos sussurros em volta das fogueiras, ou anciãs murmuram
a seu respeito nas tendas dos xeiques, de modo que todas as tribos a evitam sem
sequer saberem por quê. Foi com esse lugar que Abdul Alhazred, o poeta louco,
sonhou certa noite, antes de cantar o seu inexplicável dístico:
Morto não é quem pode eterno se fazer,
E com estranhos éons pode a morte morrer.
Não era difícil perceber que os árabes tinham boas razões para evitar a
cidade sem nome, a cidade de que se falava em estranhas narrativas, mas que
jamais fora vista por nenhum homem vivo; e mesmo assim os desafiei,
penetrando com meu camelo na desolação intocada. Somente eu a tinha visto, e
eis por que nenhuma outra face exibe sulcos de medo tão assustadores quanto a
minha; e eis por que nenhum outro homem estremece tão horrivelmente quando
o vento noturno chacoalha as janelas. Quando me deparei com ela na quietude
fantasmagórica de um sono interminável, ela me olhou, arrepiadora, sob os raios
de uma lua fria, em pleno coração do deserto. E, quando devolvi o olhar, esqueci
meu triunfo por a ter encontrado e estaquei com meu camelo, para esperar pela
aurora.
Durante horas esperei, até que o leste se tornou cinzento e as estrelas
desapareceram, e o cinza então se converteu num brilho róseo, debruado de ouro.
Ouvi um lamento e vi uma tempestade de areia se movendo em meio às pedras
antigas, muito embora o céu fosse claro e estivessem quietas as vastidões do
deserto. Então, de súbito, por sobre a fímbria remota do deserto, emergiu o
lâmina ofuscante do sol, vista através da pequena tempestade de areia que foi se
desfazendo; e no meu estado febril imaginei que dessa mesma profundeza
distante provinha um estrondo metálico de sons musicais, para saudar o disco
feroz, tal como Memnon o saúda a partir das margens do Nilo. Meus ouvidos
zumbiram, e minha imaginação ferveu quando conduzi lentamente meu camelo
através da areia, rumo àquele lugar silencioso, àquele lugar que eu somente, entre
todos os vivos, tinha visto.
Indo e vindo por entre as fundações disformes das casas e dos lugares, pus-
me a perambular, sem deparar jamais com uma inscrição sequer que me falasse
desses homens – se homens foram – que construíram tal cidade e nela habitaram
há tanto tempo. A antiguidade do sítio era mórbida, e eu ansiava por encontrar
algum sinal ou indício que provasse que a cidade fora, de fato, criada pela
humanidade. Havia certas proporções e dimensões nas ruínas de que não gostei.
Trazendo comigo diversas ferramentas, escavei entre as paredes dos edifícios
obliterados; mas o progresso era lento, e nada de significativo se revelou. Quando
a noite e a lua retornaram, senti um vento gelado que renovou o medo, de modo
que não me atrevi a permanecer na cidade. E, quando fui me retirando de entre
as paredes para dormir, uma pequena tempestade de areia, com um suspiro, se
ajuntou atrás de mim, soprando por cima das pedras cinzentas, embora a lua
estivesse clara e o deserto quase inteiramente quieto.
Acordei ao amanhecer, despertando de uma sequência de sonhos horríveis,
meus ouvidos a ressoar como se ao som de alguma fanfarra metálica. Vi o sol
despontar, avermelhado, através dos últimos haustos de uma pequena
tempestade de areia que pairava sobre a cidade sem nome, e reparei na quietude
do resto da paisagem. Mais uma vez me aventurei através das ruínas
ameaçadoras cujas formas despontavam sob a areia tal como um ogro sob um
lençol, e novamente cavei, embalde, à procura de relíquias da raça esquecida. Ao
meio-dia descansei, e à tarde passei longo tempo seguindo o traçado das paredes
e das ruas há muito desaparecidas, bem como os contornos dos edifícios
desfeitos. Percebi que a cidade fora de fato poderosa, e tentei imaginar quais
teriam sido as fontes de sua grandeza. Para mim mesmo, debuxei mentalmente
todos os esplendores de uma era tão distante que a própria Caldeia não poderia
recordá-la; e pensei em Sarnath, a Condenada, que já se elevava no país de Mnar
quando a humanidade era ainda jovem, e em Ib, que fora esculpida em pedra
cinzenta antes mesmo de existir a humanidade.
Subitamente, deparei-me com um lugar onde o leito de pedra emergia
escuro através da areia e formava uma espécie de penhasco baixo; e aí avistei,
com prazer, o que me pareceu ser a promessa de outros traços mais evidentes do
povo antediluviano. Rudemente escavadas na face do penhasco, viam-se as
fachadas de várias casas ou templos de pedra, pequenos e baixos, cujos interiores
poderiam conter muitos segredos de eras remotas para além de todo cálculo,
conquanto as tempestades de areia tivessem desmanchado há muito quaisquer
relevos que pudesse ter havido do lado de fora.
As aberturas mais próximas eram baixas e estavam entupidas de areia, mas
consegui desobstruir uma delas com minha pá e me arrastei para dentro, levando
uma tocha para ver que mistérios poderia conter. Dentro, vi que a caverna era de
fato um templo e descobri sinais claros da raça que teria vivido e cultuado ali
muito antes que o deserto fosse um deserto. Altares primitivos, pilares e nichos
– todos estranhamente baixos – abundavam; e, embora eu não visse esculturas
ou murais, havia muitas pedras esquisitas, em forma evidente de símbolos feitos
por meios artificiais. A diminuta altura da câmara escavada era deveras
intrigante, porquanto eu mal podia me erguer sobre os joelhos; mas a área era tão
extensa que meu archote revelava apenas uma pequena parte de cada vez.
Estremeci ao me aproximar de alguns dos cantos distantes, pois certos altares e
pedras sugeriam ritos esquecidos de natureza terrível, repulsiva e inexplicável, e
me fizeram imaginar que espécie de homens poderiam ter feito e frequentado
semelhante templo. Depois que vi tudo o que o templo continha, arrastei-me de
novo para fora, ávido por descobrir o que os templos tinham a mostrar.
A noite se aproximava, e no entanto as coisas tangíveis que eu tinha visto
tornavam minha curiosidade mais forte que o medo, de modo que não fugi das
longas sombras desenhadas pelo luar que haviam me perturbado quando vi pela
primeira vez a cidade sem nome. Ao crepúsculo, desobstruí outra abertura e, com
uma nova tocha, me arrastei para dentro, encontrando mais algumas pedras
vagas e símbolos, conquanto em nada mais definidos do que os que o outro
templo continha. O cômodo era igualmente baixo, porém menos extenso,
terminando numa passagem muito estreita e repleta de santuários obscuros e
crípticos. Eram esses santuários que eu examinava quando os ruídos de um vento
e meu camelo romperam a quietude lá fora, fazendo-me sair para ver o que
poderia ter amedrontado o animal.
A lua brilhava vivamente sobre as ruínas primitivas, iluminando uma
nuvem densa de areia que parecia soprada por um vento forte que agora ia
esmorecendo, proveniente de algum ponto junto ao penhasco adiante.
Compreendi que fora esse vento gelado, a levantar as areias, que perturbara o
camelo e estava prestes a levá-lo a procurar um abrigo melhor, quando por acaso
olhei para cima e vi que não havia vento sobre o penhasco. Isso me estarreceu e
me fez temer novamente, mas de imediato me lembrei dos súbitos ventos locais
que eu vira e ouvira antes, ao nascer e ao pôr-do-sol, e supus tratar-se de uma
coisa normal. Firmei-me na ideia de que ele provinha de alguma fissura na rocha
que talvez levasse a uma caverna, e observei a areia revolta, de modo a descobrir
sua fonte, percebendo rapidamente que vinha da entrada negra de um templo
bem mais distante, ao sul, quase fora de visão. Lutando contra a areia sufocante,
avancei em direção a esse templo, o qual, à medida que me aproximei,…