Marcelino Pão e Vinho – José Maria Sánches

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“Marcelino nunca tinha visto um crucifixo tão grande com um Jesus Cristo do
tamanho de um homem pregado na cruz, alta como uma árvore. Aproximou-se da
cruz e, ao olhar fixamente o rosto do Senhor, o sangue que lhe gotejava da fronte
pelas feridas da coroa de espinhos, as mãos e os pés cravados na madeira e a
grande chaga do lado, seus olhos se encheram de lágrimas. Jesus tinha os olhos
abertos e, com a cabeça um pouco inclinada sobre o braço direito, não podia ver
Marcelino. O menino foi dando a volta até colocar-se debaixo do seu olhar. Jesus
estava muito fraco e a barba caía-lhe aos borbotões sobre o peito; tinha as faces
encovadas e seu olhar despertava muita pena em Marcelino. Marcelino vira
muitas vezes Jesus, mas sempre pintado no quadro do altar da capela ou em
crucifixos pequenos, como se fossem de brinquedo, nos rosários dos frades. Mas
nunca havia visto um ‘de verdade’ como agora, com todo o corpo nu e que se
podia contornar com os braços, havendo espaço por trás. Então, tocando-lhe as
pernas magras e duras, ergueu os olhos para o Senhor e disse-lhe, sem rodeios:
— Você tem cara de fome!”
A inocência, a curiosidade, a pureza da alma de uma criança estão
eternizadas nesta moderna fábula, já publicada em 26 idiomas, em mais de cem
países, como uma verdadeira lição de amor e poesia a este mundo tão conturbado
pelo ódio e pela violência.
Nesta sensível tradução de dom Marcos Barbosa, Marcelino pão e vinho,
o clássico hispano-americano de José Maria Sánchez-Silva, ganhou um novo
esplendor, não o da película cinematográfica apenas, mas o toque místico de um
homem voltado para as coisas e a gente de Cristo.
A comovente história do recém-nascido deixado à porta de um paupérrimo
convento de frades franciscanos na Espanha e sua conseqüente adoção pelos
religiosos, sua vida de menino, com sentimentos e ações iguais aos de qualquer
criança. Suas pequenas crueldades com os animais, travessuras e
questionamentos, sua ansiosa busca do desconhecido; seu crescimento interior e
sua grande viagem… Tudo isso é mostrado ao leitor de maneira singela e
envolvente para que cada um se surpreenda ao encontrar um pouco do menino
Marcelino e seu amigo Manuel na criança que cada um tem dentro de si.
Ilustrações: Mário Pacheco

José Maria Sánchez-Silva

Marcelino
Pão e Vinho

Tradução de
DOM MARCOS BARBOSA

Título original espanhol
MARCELINO PAN Y VINO

Copyright © 1962, 1982 by José Maria Sánchez-Silva

Primeira parte

Marcelino
Pão e Vinho

1
Há coisa de cem anos, três filhos de São Francisco pediram ao prefeito de um
povoado que os deixasse morar numas ruínas abandonadas, a duas léguas dali, de
propriedade do município.. O prefeito, homem religioso, logo lhes concedeu
licença, sem sequer consultar os vereadores. Partiram pois os frades, não sem
antes o abençoarem. E, chegando às ruínas, começaram a planejar um abrigo para
passar a noite.
O local tinha sido uma granja, de onde os vizinhos do povoado tentaram
opor resistência aos franceses que invadiram a Espanha por volta de 1800, ou ao
menos desviá-los do vilarejo. Entre os frades, um jovem decidido e engenhoso
viu logo por onde começar: lá estavam, se bem que nem todas inteiras, as grandes
pedras usadas na construção primitiva. Nas proximidades havia árvores para
lenha, e pouco adiante corria um regato que não os deixaria morrer de sede. Mas
como o dia já chegava ao fim, apesar de terem saído do povoado antes do
amanhecer (vinha com eles um velho trôpego), o bom frade decidiu começar pelo
princípio: estendendo sobre alguns troncos uma velha manta, improvisou entre as
pedras um vão coberto. Tendo acendido um fogo e instalando ali o ancião,
mandou o outro buscar água, enquanto assava nas brasas as batatas que uma
mulher lhes dera. Terminadas as orações e a parca ceia, e com o cair da noite,
entregaram-se os três ao sono, para no dia seguinte, sempre sob as ordens do
mais diligente, começarem o trabalho.
Assim se iniciou a reconstrução da grande casa isolada, que vamos
encontrar, cinqüenta anos mais tarde, muito diferente. É uma construção tosca e
simples, mas parece sólida, tendo às vezes abrigado das tempestades peregrinos e
pastores. Sobre o primeiro andar bem grande, ergue-se outro menor; rente à casa,
dentro de um cercado de pedras, uma horta fornece aos frades boa parte do que
comem. No primeiro andar localizam-se a pequena capela da comunidade, as
celas, o refeitório e a cozinha com a respectiva dispensa; no de cima há outras

celas e um amplo depósito, onde se guardam coisas maiores e de pouco uso; à
direita, no topo da velha e carcomida escada, há um sótão que uma janelinha mal
ilumina.
Agora já não são três, mas doze frades. Dois daqueles primeiros já
morreram e o terceiro, velho e enfermo, é justamente o que conhecemos tão
jovem e empreendedor. Os frades possuem seu cemitério no fundo da horta e
vivem rezando e trabalhando, sendo muito úteis para a região: os quatro ou cinco
sacerdotes podem dizer missa aos domingos e dias de festas nos povoados
vizinhos onde não há padre. Podem também batizar os que nascem, casar os
jovens, enterrar os velhos, levar imagens em procissão nos dias tradicionais, além
de dar conselhos, consolo e perdão aos que se confessam. Continuam a viver de
esmolas, e há cerca de dez anos quase os perdíamos para sempre: morto o antigo
prefeito, o novo chegou um dia ao convento montado em seu burro, a fim de
perguntar-lhes com que direito ocupavam aquele lugar. Como respondessem com
grande doçura e humildade que estavam prontos a abandonar a casa que haviam
construído a partir de ruínas, alguns deles inclusive já dispostos a pôr-se em
caminho, o prefeito voltou atrás, declarando que ainda podiam ficar por algum
tempo. Anos depois, morria também esse prefeito; o novo, neto aliás daquele
primeiro, confirmou o ato do avô, conseguindo até que os vereadores aprovassem
uma permissão provisória. De dez em dez anos devia a comunidade renovar o
pedido de licença. Mas foram tão grandes os benefícios para os povoados
vizinhos, que certo dia a Assembléia comunicou ao Padre Superior a resolução
de presentear os frades para sempre com o terreno e a casa. Ao que o Padre
Superior replicou ser aquele o melhor meio de expulsá-los dali, já que não
podiam possuir nada de próprio, devendo viver apenas de esmolas.
Devido ao trabalho e amor que punham em tudo, o convento, ao cabo de
certo tempo, parecia não apenas sólido, mas até bonito. Com água tão perto, os
frades trataram de plantar árvores, arbustos e flores, sem falar na magnífica horta,
tudo muito limpo e organizado. Foi então que, certa manhã (estava nascendo este
século), quando os galos ainda dormiam, o irmão porteiro ouviu um choro junto à
porta, apenas encostada.

Apurou mais o ouvido e acabou saindo, para verificar o que era. Embora bem
longe, no lado do oriente, o dia ameaçasse clarear, ainda era noite. O irmão deu
alguns passos em direção ao que estava ouvindo, quando quase tropeçou numa
espécie de trouxa de roupa que se mexia. Aproximou-se. Os rumores não eram
mais que o choro de um recém-nascido, abandonado há poucas horas. O bom
irmão recolheu a criaturinha e entrou no convento. Para não despertar os que bem
mereciam dormir, cansados de seus trabalhos e caminhadas, entreteve o menino
como pôde: nada lhe ocorrendo de melhor, embebeu com água um chumaço de
linho e o deu para o bebê chupar, após o que ele pareceu conformar-se com o
silêncio exigido.

Muito longe, o primeiro galo cantou. O irmão, com o menino nos braços,
ouviu o galo deslizar silenciosamente para o pátio, como costumava fazer àquela
hora, para caçar não se sabe que bichinhos ainda sonolentos. Já era hora de tocar
o sino e de contar aos frades o seu achado. O pequenino havia fechado os olhos e
por fim adormecido ao calorzinho do áspero hábito do irmão. Ainda bem que
estavam na primavera e o frio já cessara; do contrário, o pobrezinho teria corrido
o risco de morrer gelado. Ao soar do sino, toda a casa se pôs em movimento.
Quando o irmão apresentou o menino ao Padre Superior, este não pôde conter o
espanto, como os demais irmãos, à medida que também acorriam às exclamações
de surpresa. O irmão porteiro explicava e tornava a explicar como tudo
acontecera, enquanto os frades continuavam a sorrir e a mover as cabeças com
terna compaixão. O problema, contudo, não era dos menores. Que iriam fazer
com o menino? Não tinham meios de criá-lo e de cuidar dele. O Padre Superior
decidiu que um dos irmãos deveria levar a criança para um povoado próximo e
entregá-la às autoridades, Mas o irmão porteiro e alguns dos padres mais jovens
não viram com bons olhos tal ordem. E foi Frei Bernardo o primeiro a levantar
um obstáculo:
— Padre, não devíamos antes batizá-lo?
A idéia teve…

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